Quando esse livro chegou em casa pela parceria com a Companhia das Letras, eu não sabia bem o que esperar. O tema e o cenário me cativaram logo de cara. Estamos na Índia, em uma agitada e pobre região metropolitana, onde os moradores vivem em uma favela sob ameaça constante de despejo e reféns da corrupção. Então, uma criança desaparece sem deixar rastros.
O livro
Jai é um garotinho de 9 anos, muito curioso e fã de séries policiais. Mora com a família, mãe, pai e sua irmã, Didi, atleta da escola, em uma casa muito simples, de apenas um cômodo. A luta é diária para sobreviver em um lugar sem água potável, onde é preciso pagar para usar os banheiros públicos super lotados. Sem contar o pagamento mensal apenas para viver um dia após o outro para as gangues locais e até para a polícia. Jai e seus amigos, a inteligente e obstinada Pari e Faiz, um trabalhador menino muçulmano, são apenas crianças, mas já viveram mais do que muita gente poderia aguentar.Gosto de espionar as famílias que são tão tristes quanto a nossa, porque quero saber se andam fazendo alguma coisa de diferente para impedir os fantasmas de agarrarem seus ossos.
Um dia, um garoto da escola e do basti, a favela onde Jay, Pari e Faiz moram, desaparece. A mãe do garoto, chamado Bahadur, está desesperada, mas a polícia não liga muito para o sumiço do menino. Na verdade, até fazem pouco caso e tiram sarro do desespero da mãe, ameaçando mandar as escavadeiras para o basti e despejar todo mundo. Jai sente que os adultos não estão dando a devida importância ao caso de Bahadur, então ele e os amigos decidem investigar o caso, bem no estilo das séries de detetives.
É importante dizer que este livro é sobre crianças, mas não é um livro para crianças. Conforme mais meninos e meninas do basti desaparecem e um clima noir urbano se instala entre a bruma da cidade e o aroma da comida de rua, Jai é forçado a confrontar a terrível realidade, uma que os adultos estão começando a aceitar também: a de que essas crianças podem nunca mais voltar. A autora analisa com muita competência e destreza o modo de vida de pessoas negligenciadas, vivendo em áreas pobres, exploradas por todos e sem ter a quem pedir socorro. Temos uma visão infantil da sociedade, mas definitivamente este não é um livro infantil.
Jai é o nosso narrador em boa parte dos capítulos, mas entre eles a autora intercala uma visão de mundo daquelas crianças que desapareceram e o que elas viveram poucas horas antes do desaparecimento. Faiz insiste que há djinns malignos por trás dos sumiços, justificando o título do livro em inglês. Pari é uma detetive com ares de Hermione, porque ela consegue se sair melhor nessa área de investigação criminal do que Jai, que acredita ser o melhor detetive do trio. As interações entre esses investigadores mirins rendem algumas das melhores passagens do livro.
Deepa criou um grande elenco de personagens secundários e em alguns momentos dá até para confundir uns com os outros, mas há aqueles que se destacam, como os pais apavorados, querendo seus filhos de volta. Há uma polícia falha, mal paga, corrupta e negligente, que só começa a investigar o que acontece no basti depois que um figurão do submundo da cidade decide apoiar os moradores. Há os falsos líderes religiosos explorando o desespero dos familiares e amigos e o antissemitismo que os muçulmanos enfrentam em uma comunidade hindu.
A descrição feita do basti, das construções, da comida sendo feita nas ruas, das crianças revirando pilhas de dejetos no lixão, tudo isso nos imerge profundamente no enredo conforme o mistério se aprofunda e Jai é forçado a admitir que talvez não seja um detetive tão bom assim. Seu mundo é marcado pela desigualdade galopante e Jai percebe com tristeza que seu basti poderia pegar fogo e mesmo assim a imprensa não falaria a respeito. É um mundo que lembra o nosso, já que o basti fornece funcionários para os prédios de alto padrão não muito longe dali.
Achei que o livro demorou a engatar. As três crianças ficam correndo em círculos, sem descobrir algo de útil, mas acredito que a intenção da autora fosse mostrar as reações das pessoas aos desaparecimentos antes de fornecer respostas. E aí no final, quando algumas respostas surgem, elas são poucas e incompletas. E de novo, acho que foi intencional, para mostrar o quanto a demora da polícia em investigar esses desaparecimentos levou a um desfecho tão insatisfatório para a maioria deles.
O livro está bem revisado e traduzido. A tradução de Odorico Leal está ótima, com várias notas de rodapé para nos situar entre tantos termos típicos da cultura indiana.
Ser detetive é difícil demais. Talvez eu não queria ser detetive no fim das contas.
Obra e realidade
Por 11 anos, Deepa trabalhou na Índia, noticiando a violência das áreas pobres das grandes cidades indianas. Em seus textos, ela acaba não conseguindo falar dessas crianças tão resilientes, tão marcadas pela brutalidade da vida com tão pouca idade. Então esse foi um dos motivos para escrever o livro, uma forma de dar forma, cor e voz para tantas crianças negligenciadas diariamente.O segundo motivo foi como as notícias falsas e a facilidade com que elas são propagadas por meio de aplicativos de mensagens vem disparando a violência contra minorias na Índia, principalmente contra os muçulmanos, acusados de estarem por trás dos desaparecimentos no livro e na vida real. Movimentos de extrema direita na Índia estão cada vez mais violentos e quando uma sociedade se sente acuada e amedrontada, acaba caindo facilmente em notícias falsas, principalmente aquelas que reforçam seus preconceitos. Todos os dias, 180 crianças desaparecem na Índia e a maioria, por virem de bairros pobres, são ignoradas pela polícia e pelos políticos. A obra de Deepa até pode ser ficção, mas está enraizada na realidade.
Deepa Anappara é uma jornalista e escritora indiana, radicada em Londres. Trabalhou por onze anos na Índia, com coberturas de destaque sobre o impacto da pobreza e da violência religiosa nas crianças. Este é seu livro de estreia.
PONTOS POSITIVOS
Jai, Pari e Faiz
Bem escrito
Cenários
PONTOS NEGATIVOS
Começa devagar
Final em aberto
Jai, Pari e Faiz
Bem escrito
Cenários
PONTOS NEGATIVOS
Começa devagar
Final em aberto
Avaliação do MS?
Terminei esse livro com uma sensação de perda. Acabei me afeiçoando àqueles personagens, principalmente as crianças, tão vulneráveis em um mundo de adultos. O livro não terá pena de você, já deixo avisado. Você vai se ver revoltada conforme vira as páginas, querendo respostas para os desaparecimentos e irritada com a falta de ação daqueles que deveriam nos proteger. Quatro aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também!Até mais!
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