Resenha: Memória da água, de Emmi Itäranta

Lançado no Brasil em 2015, esse livro escapou do meu radar por alguma razão, mas estava perdido pelo meu Kindle em alguma promoção do passado. Em um mundo que pode muito bem ser o nosso daqui alguns anos, uma jovem mestre do chá vive em uma ditadura onde a água se tornou o item mais valioso e buscado pela população.

O livro
Vivemos em uma época em que a Terra está ficando sem água doce. Seu consumo é rigorosamente regulamentado pela ditadura militar, e os crimes hídricos são severamente punidos. Uma casa com o símbolo do crime da água na porta é evitada por todos, pois ninguém sabe quem poderá ser o próximo. A filha do mestre do chá de um vilarejo, Noria, segue os passos do pai e, quebrando a tradição, é ordenada mestra do chá, embora a alternativa fosse se mudar com a mãe do interior de Kuusamo, na Finlândia, para uma cidade universitária do outro lado do continente.

Resenha: Memória da água, de Emmi Itäranta

O clima esquentou tanto que arbustos de chá crescem na Lapônia escandinava e a temperatura raramente cai abaixo de dez graus. Nuvens de insetos oportunistas obrigam as pessoas a usar chapéus com telas para se proteger. Mesmo as gerações mais velhas não têm mais memória da neve, e quase nenhum registro escrito do mundo anterior sobreviveu no mundo atual, apenas os diários mantidos pelos mestres do chá por gerações. A Europa foi dominada pela China e a água se tornou tão escassa que passou a ser controlada e distribuída em cotas pelos militares.

A água é o mais versátil de todos os elementos. Não tem medo de morrer no fogo ou viver no ar, não hesita em se chocar com rochas afiadas durante as tempestades ou de penetrar na escura mortalha da terra. A água existe para além de qualquer começo e fim.

Noria é uma adolescente, porém a maneira como a autora a descreveu me fez imaginar uma menina de uns dez anos de idade. E aqui começa meu primeiro problema com o livro: o fato de Noria, a personagem principal, aquela com quem vamos caminhar ao longo de todo o livro, ser totalmente plana, desinteressante, não ter gostos nem preferências. Ela solta pensamentos filosóficos que aprendeu ao longo da vida e é isso. Se vamos caminhar com um personagem, ele tem que despertar nossa atenção. Seja uma pessoa boa, má ou indiferente, algo tem que se destacar. E Noria não tem destaque algum, em nenhum momento, sempre aquela atuação plana, como se estivéssemos assistindo a um monólogo ruim.

Sua melhor amiga, Sanja, tem mais personalidade do que a protagonista. Acredito que a intenção da autora fosse mostrar a filosofia por trás da cerimônia do chá nas ações e intenções de Noria, mas comigo não funcionou. Essa garota não grita, não chora, não esbraveja, não xinga ninguém, não tem gostos nem preferências pessoais. É praticamente uma não-pessoa o tempo todo. Até mesmo o antagonista tem mais personalidade do que a personagem principal.

Logo no começo do livro, o pai de Noria lhe mostra um segredo oculto na colina na propriedade da família. Em um mundo com escassez de água doce, a família Katio guarda uma nascente. Aqui o tema do enredo também me pegou um pouco... Por mais que o Novo Qian valorize o chá e a cerimônia - e isso eu estou presumindo, pois o livro não faz tal associação - como que um segredo como esse foi mantido por tanto tempo? Como a família dela mantém essa linda propriedade verdejante, com vegetais, arbustos, bosque, se a cota de água para todo mundo é racionada? O governo imperial nunca, nenhuma vez, desconfiou? Ninguém do vilarejo jamais perguntou nada? Gente...

O livro tem sim seus méritos. Várias vezes Noria descreve o lixão dos plásticos, onde o resto do mundo de antes está aglomerado em montanhas de dejetos que são minerados manualmente pelas pessoas em busca de bons materiais. É assim que Noria acha vários discos com informações importantes sobre o mundo de antes (ainda que, no fim, eles não têm muita serventia para Noria). Essas pilhas de dejetos artificiais nos é familiar e muito próxima. O racionamento de água e o desespero das pessoas por não conseguir dar um simples remédio para uma criança porque não há água potável disponível também não parece distante.

A autora também descreve a cerimônia do chá e toda a filosofia em torno dela, mas admito que achei demais porque me soaram repetitivas, além de mecânicas. É como se a autora sentisse que estava faltando um pouco de contexto e enfiasse as descrições ali. Acredito que o tempo que ela perdeu repetindo frases de efeito sobre a água poderia ter sido melhor investido em descrever melhor o império, descrevendo melhor a relação de Noria com seus pais, seus sentimentos e o que ela esperava da vida. Seu caráter é indiscutível, mas sua personalidade é inexistente.

Li o ebook e não o livro físico. A edição foi traduzida do inglês, e não do finlandês, por Liliana Negrello e Christian Schwartz e está muito boa.

As águas mudam conforme a lua, abraçam a terra, não têm medo de morrer no fogo ou viver no ar. Entre na água de leve e sentirá um toque tão doce que quase se confunde com a pele. Mas choque-se contra ela e a água o quebrará em pedaços.

Obra e realidade
Falta de água afeta aproximadamente 40% da população mundial e está causando conflitos e migrações em vários lugares do mundo. Em 2018, água contaminada nos canais fluviais da cidade iraquiana de Basra mandou mais de 100 mil pessoas aos hospitais e pronto-socorros da cidade. Em protesto ao mau uso da água e às doenças que ela levaram para o povo, eles saíram às ruas em protesto. A polícia abriu fogo contra os manifestantes.

Segundo estimativas das Nações Unidas e do Banco Mundial, secas poderiam colocar 700 milhões de pessoas em risco de deslocamento em 2030. Se não há água, as pessoas deixam um lugar em busca de outro e muitos políticos vão tentar controlar um recurso vital para a humanidade, podendo inclusive brigar por ele. O planeta Terra é conhecido também como "planeta água", mas água doce e potável em rios, lagos, córregos e abaixo da superfície constituem apenas 0,7% da água total. Dá pra entender porque ela é tão rara e importante.

Emmi Itäranta

Emmi Itäranta é uma escritora finlandesa. Memória da água foi seu primeiro livro.

PONTOS POSITIVOS
Tema atual
Cerimônias de chá
Sanja
PONTOS NEGATIVOS
Personagens rasos
Desenvolvimento ruim

Título: Memória da água
Título original em inglês: Memory Of Water
Autora: Emmi Itäranta
Tradutores: Liliana Negrello e Christian Schwartz
Editora: Galera Record
Páginas: 288
Ano de lançamento: 2015
Onde comprar: na Amazon!

Avaliação do MS?
É uma pena que a execução de uma ótima ideia tenha sido tão ruim. Quis muito gostar do livro e de suas personagens, quis andar ao lado delas e ver o mundo por seus olhos, mas tirando alguns bons momentos, Memória da água não conseguiu me cativar. Três aliens para o livro.


Até mais! 🍵

Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Uma amiga minha me falou desse livro anos atrás, ela é apaixonada por chás e um amigo presenteou ela com esse livro por isso. Quando abri o blog e vi que tinha resenha dele fiquei toda excitada. Apesar dos pontos frágeis fiquei com vontade de ler o livro, não é um livro absurdamente comentado e chegou a mim por dois canais diferentes... pode ser um sinal néh?!?!? kkk A proposito, me pegou demais ter um Schwartz na tradução da obra, me lembro que essa família é proprietária da Cia das Letras (quando um detalhe irrelevante chama atenção).

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    1. Sem dúvida é um livro diferente da maioria dos universos distópicos com adolescentes, mas senti que faltou algo mais, sabe? A protagonista é tão sem graça que me peguei bocejando várias vezes. Terminei na base da teimosia, porque fiquei muito curiosa com o final. No fim, acho que vale a leitura sim, mas deixando os avisos de que pode dar soninho.

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