Resenha: Nova Cosmogonia e Outros Ensaios, de Stanisław Lem

Muitos conhecem Stanisław Lem por seu famoso livro Solaris (ou as adaptações para o cinema da obra). Solaris é um dos meus livros favoritos, um livro provocador, que tem seus problemas, mas que fica com a gente muito depois da leitura. Poucas pessoas, contudo, conhecem seus ensaios, alguns deles bem ácidos. Reunidos e traduzidos para o português pela primeira vez, Nova Cosmogonia e Outros Ensaios reúne alguns deles em uma tradução inédita e primorosa direto do polonês.

O livro
Lem era um autor provocador. Isso logo transparece em seus textos, como os aqui reunidos. Nova cosmogonia e outros ensaios conta com dez textos de várias épocas da vida de Lem, vertidos diretamente do polonês pelo professor, ensaísta, poeta e tradutor polonês Henryk Siewierski. A publicação foi possível graças a um convênio com a Embaixada da República da Polônia em Brasília.

Resenha: Nova Cosmogonia e Outros Ensaios, de Stanislaw Lem

Os temas dos ensaios são vários, o que sinalizam para os diversos pensamentos de um autor que gostava de cutucar seus leitores: filosofia, tecnologia, ciência, cosmogonia, ficção científica, futurologia, vida extraterrestre. O livro está dividido em duas partes, onde a primeira conta com três ensaios da fase inicial de Lem, e a segunda com textos escritos nos últimos anos de sua vida. Enquanto os ensaios da primeira fase são mais longos, sem chegar a um ápice ou desfecho, os da segunda são mais assertivos.

Para Lem:

(...) o ensaio é uma forma de expressão principal, e não apenas uma forma de complementar ou um caminho lateral de divulgação ou popularização da ciência.

Página 12

A organização em duas fazes divide os ensaios em fases cronológicas. Na primeira, Lem versa sobre a expansão das tecnologias e a configuração de novos mundos. A segunda por sua vez, trabalha o leve ceticismo do autor em relação a esse tecnoimperialismo e à mediocridade que o ser humano impõe às suas próprias criações. Lem criticava a criação da internet apenas para distribuir pornografia, por exemplo. Lidando com termos complexos já para a época em que foram escritos, Lem conseguiu vislumbrar um futuro complicado para a raça humana, em especial se formos contar com a falta de ação da humanidade diante de problemas crônicos, como as mudanças climáticas globais.

Em "Duas evoluções", ensaio que abre o livro, Lem discute a evolução tecnológica e a evolução biológica, onde destaca semelhanças e diferenças. Por exemplo, enquanto a natureza apenas faz cegamente, o ser humano se vale da ciência para criar tecnologia. Mas tanto uma quanto a outra imitam as formas de suas antecessoras. Por isso que os répteis se parecem com os peixes e o primeiro carro lembra uma carruagem. Achei esse ensaio bem instigante, ainda que esteja datado em certos aspectos, por isso é preciso relevar, já que foi publicado em 1984.

Outro aspecto interessante de Lem é que, assim como Jorge Luis Borges, ele se vale resenhas de livros e autores fictícios para trabalhar suas próprias ideias literárias. O segundo ensaio, "Alfred Testa: 'Nova Cosmogonia', é um texto desse tipo, onde Lem estrutura o texto como sendo um discurso de Testa no momento em que recebeu o Prêmio Nobel. O próximo ensaio, "Provocação" também segue a mesma pegada do anterior, onde o autor resenha a obra de Horst Aspernicus.

Alguém pode se perguntar por que um autor como Lem, provocador por natureza, se valeria do uso de pseudônimos e de autores fictícios para destilar suas próprias ideias a respeito de obras que nem existem. Para o tradutor, Lem usaria o recurso por causa de pontos de vista polêmicos ou arriscados demais, principalmente se lembrarmos que ele os escreveu sob o véu da censura da União Soviética. Escrever sobre algo que, hipoteticamente, não existe, o isentaria de responder aos censores.

Interessante apontar a questão da censura soviética e da Cortina de Ferro. Isso isolou Lem dos trabalhos ocidentais de autores como Asimov e Clarke, o que o deixou sozinho para criar sua própria cosmologia e universo fictício. Acho que isso explica porque acho Solaris um livro tão fora da curva quando comparado com outras obras do mesmo período. Até hoje o livro me assombra, não importa quantas releituras eu faça dele.

Ainda que pareça datado em certos pontos, os ensaios mostram a centelha criativa de Lem. Indo das mudanças climáticas globais ao surgimento da inteligência artificial, Lem não poupou palavras para discorrer sobre o que acha a respeito.

Podemos imaginar programas eletrônicos capazes de fingir comportamentos racionais, embora isso não passe de uma vaga aparência.

Página 209

O livro está muito bem traduzido e comentado por Henryk Siewierski, com anotações no final feito por ele sobre vários aspectos e ideias expostos por Lem. Acredito que este livro seja indispensável para a estante de qualquer fã de ficção científica, futurologia e literatura. Gostaria inclusive de ver mais trabalhos de Lem traduzidos por Siewierski.

Obra e realidade
Pouco traduzido no Brasil, Lem tem uma vasta produção literária, que vai de romances, contos, memorialismo e ensaios. Publicado em mais de 40 países, as leitoras brasileiras tiveram pouco acesso a seus textos. Em sebos, é possível encontrar alguns de seus trabalhos, além de Solaris, publicado por editoras extintas como a Francisco Alves.

Lem é um dos mais importantes pensadores e autores de ficção científica do século XX. Podemos até não concordar com tudo o que ele diz em seus ensaios, mas certamente é possível reconhecer a mente intensa e imaginativa do autor, capaz de usar a ficção como ferramenta de crítica do real. Acredito que essa mente inquieta e inquisidora de Lem se vale em grande parte de sua vivência. Foi mecânico de carros durante a Grande Guerra e antes de poder viver da literatura, trabalhou como soldador e tradutor. O isolamento causado pela Cortina de Ferro acabou incendiando sua criatividade, rendendo às leitoras um poço de inspirações.

Stanislaw Lem

Stanislaw Lem foi um escritor polonês de ficção científica.

PONTOS POSITIVOS
Bem pesquisado
Bem escrito
Futurologia
PONTOS NEGATIVOS

Desatualizado em alguns momentos


Título: Nova Cosmogonia e Outros Ensaios
Título original em polonês: Nowa kosmogonia
Autor: Stanisław Lem
Tradutor: Henryk Siewierski
Editora: Perspectiva
Ano: 2019
Páginas: 240
Onde comprar: na Amazon!

Avaliação do MS?
Terminei esse livro e fiquei semanas pensando nele, volta e meia voltando às anotações que fiz pelas páginas, relendo algumas passagens. A complexidade do pensamenot de Lem é fascinante e é uma pena que tão poucos trabalhos do autor, sejam de ficção ou não, tenham chegado aos leitores brasileiros. Quatro aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também!


Até mais! 📖

Um grande autor não é aquele que cria um novo mundo, mas sim aquele que altera, em alguma medida, a totalidade da literatura.

Jorge Luis Borges

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