Resenha: Dreamsnake, de Vonda N. McIntyre

Este é mais um capítulo da série "Livros premiados de ficção científica que nunca foram traduzidos no Brasil". Vonda N. McIntyre foi uma gigante dentro da ficção científica, tendo feito grandes contribuições ao universo de Star Trek. Foi uma voz pertinente a favor da presença de mais mulheres no gênero, além de ter sido uma das criadoras do famoso Clarion West, disputada oficina para autores de ficção científica, em Seattle.

O livro
Em uma Terra pós-apocalipse nuclear, Snake é uma curandeira. Ela chega a uma tribo nômade para cuidar de um garotinho doente, chamado Stavin. Snake não tem esse nome por acaso, ela possui cobras medicinais para tratar diversas doenças, inclusive aquelas relacionadas à radiação. Uma delas é Grass, a cobra dos sonhos, que ela usa para ajudar o garoto a dormir. Porém, a ignorância dos pais da criança os leva a machucar Grass mortalmente, pois eles temiam que a cobra machucasse o menino. Sem Grass, Snake não pode trabalhar. Stavin é curado e o líder do povoado, Arevin, pede desculpas pelo o que houve. Snake precisa de uma nova cobra dos sonhos e assim deve voltar para casa e conseguir outra.

Resenha: Dreamsnake, de Vonda N. McIntyre

Disseram que lá fora tudo matava, então pensei que nada matava.

(tradução livre)

Porém, o caminho até lá não será fácil. O repositório de conhecimento é uma cidade que não gosta de dividir sua ciência. Até lá, Snake terá que enfrentar tempestades de areia, envenenamento por radiação, preconceito e perseguição, enquanto tenta ajudar as pessoas. Uma delas é Jesse, uma mulher que se machucou ao cair de um cavalo. Aqui entra um ponto bem interessante introduzido por Vonda: o relacionamento de Jesse é com dois companheiros, um homem e uma mulher, que cuidam dela nesse momento. Existem várias desconstruções feitas pela autora ao longo do livro, publicado originalmente em 1978 e considerado um dos grandes expoentes da segunda onda do feminismo e com louvor.

Snake é uma grande personagem e simpatizei com ela imediatamente. Ela tem empatia pelas pessoas, compreende seu sofrimento, não os engana com terapias milagrosas. É direta sobre o que pode ou não pode fazer. Jesse, por exemplo, está mortalmente ferida e ela não suaviza a informação, ao mesmo tempo em que não deixa de ser humana e de querer ajudá-la nesse momento. Não é fácil a jornada dessa curandeira. Ela precisa lidar com preconceito, com julgamentos dos outros. A visão de cobras assustam e nem todo mundo entende o que elas podem fazer.

Ocupando o papel central da narrativa em uma típica "jornada do herói", Snake é inteligente, autossuficiente. O que os personagens masculinos geralmente se valem, como força física e brutalidade, é algo que não encontramos em Snake. A narrativa é guiada pela sensibilidade, pelo respeito à dor das pessoas, pela compreensão. Esses são atributos que vemos pouco em livros de ficção científica até mesmo nos dias de hoje. De várias maneiras Snake me fez lembrar das personagens de Becky Chambers, pois Chambers também trabalha com essas mesmas emoções.

Este mundo pós-guerra nuclear não é nada fácil. A humanidade retorna ao tribalismo, com exceção de alguns redutos isolados de civilização. Snake vagueia por essas tribos ajudando quem pode, trazendo conforto aos moribundos, curando enfermidades. Pela experiência que temos dentro da própria ficção científica, em mundos tão destruídos e bárbaros é comum que as pessoas apelem à violência. Temos exemplos de sobra de filmes e livros nessa pegada. E o grande ponto alto do livro é justamente termos uma protagonista que cura, não destrói, nem mata, mas que ajuda pessoas. Se hoje isso é visto como revolucionário, em 1978 era ainda mais.

Em um determinado momento da narrativa Snake descobre um caso de abuso infantil. Deixo aqui um alerta de gatilho, mas também ressalto que o foco é na vítima. Há um momento em que o abusador tenta usar de malabarismos para se justificar e Snake não cai nesse papinho. Não é o tipo de coisa que vemos em ficção científica e achei bastante importante a abordagem, inclusive pela forma como ela termina.

A estrutura do romance pode incomodar, pois ele é uma junção de noveletas e contos, então ele não traz aquela sensação de continuidade que veríamos em um livro desse tamanho. E admito, ele demora um pouco para engatar, mas se você persistir vai encontrar um grande enredo, com personagens cativantes e que quebram padrões e papéis de gênero. São eles que convencem e nos seguram.

Infelizmente, o livro nunca saiu no Brasil. Você pode encontrar em sebos a edição portuguesa já bem antiga. Acredito que o conteúdo feminista do livro não agrade a algumas editoras e por isso ele permanece inédito por aqui, o que é uma pena. Vonda é mais conhecida por seus livros de Star Trek, incluindo a novelização de três filmes. Li o ebook, mas gostaria de ter o livro físico em mãos. Ele ficou fora de catálogo mesmo lá fora por um bom tempo, mas pelo o que vi na Amazon ele voltou a ter edições em papel.

Obra e realidade
A maneira como Vonda pensou neste livro é bem interessante. Foi em uma oficina criativa no Clarion Writers que surgiu a ideia. Ganhador do Nebula, Hugo e Locus, Dreamsnake surgiu num exercício, onde as pessoas pegavam ideias de um copo de isopor para escrever um conto a respeito. Ele acabou ficando com as palavras snake e cow. Um colega sugeriu que ela desse o nome ao personagem de Snake e cow em inglês também é um verbo que ela poderia muito bem usar. Surgia assim dos romances mais importantes da literatura de ficção científica.

Vonda quebrou padrões para a época que ainda discutia se mulheres tinham ou não lugar dentro da ficção científica. Tendo crescido nos anos 1950 e sendo fã de bizarras histórias sobre planetas alienígenas e extraterrestres, ela teve que lutar contra a visão cristalizada do que uma mocinha deveria ser. Não só isso, Vonda teve que lutar para encontrar mulheres nas histórias que lia, tendo encontrado seu lugar quando Star Trek estreou em 1966.

Seus livros carregados de questionamentos sobre gênero e sexualidade, performance do feminino e protagonistas fortes e vigorosas talvez explique porque sua obra ainda não foi traduzida para o português: em Dreamsnake nós temos uma mulher protagonista, um personagem masculino que performa a masculinidade de uma maneira não-tóxica e uma história que envolve poliamorismo, curandeiras, controle de fertilidade, consentimento, opressão e abuso.

Vonda N. McIntyre

Vonda Neel McIntyre (1948 – 2019) foi uma proeminente escritora de ficção científica e fantasia norte-americana, ganhadora de vários prêmios literários.

PONTOS POSITIVOS
Bem escrito
Snake
Desconstrução de papéis de gênero
PONTOS NEGATIVOS
Não tem em português
Pode ser meio lento


Título: Dreamsnake
Autor: Vonda N. McIntyre
Editora: Jo Fletcher Books
Páginas: 274
Ano de lançamento: 2016
Onde comprar: na Amazon!

Avaliação do MS?
Demorei para terminar essa leitura, admito. Mas depois que peguei o jeito e o estilo da narrativa de Vonda, ela fluiu melhor. É um livro para ser desgutado aos poucos mesmo, para você mergulhar no enredo devagar, para se aproximar de Snake e suas cobras sem assustá-las. Um grande livro, uma pena de verdade que não tenhamos uma versão traduzida. Fica aí a dica, editoras! Quatro aliens para o livro e uma forte indicação para você ler também!

MUITO BOM!

Até mais! 🐍

Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Capitã, se não me engano, a introdução do romance, que talvez originalmente fosse um conto, foi publicada num dos números da Isaac Asimov Magazine em versão nacional. Não lembro o número, mas lembro bem do conto.

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