Em um ótimo exemplo sobre como os opostos se atraem e interagem entre si, temos um dos primeiros livros de Octavia Butler, parte da série O Padronista, que começou a ser publicada no final dos anos 1970 e começo dos 1980. Pela ordem da publicação, Semente Originária é o quarto livro publicado, mas é o primeiro na cronologia da série. Dois seres muito poderosos se conhecem na África e partem para um novo continente juntos.
O livro
Nossa jornada começa no final do século XVII. Anyanwu é uma velha curandeira que sua própria vila teme. Um de seus maiores segredos é sua capacidade de poder se transformar em qualquer pessoa ou animal. É assim que ela tem vivido e enganado as pessoas, posando como uma velha, quando ela pode parecer qualquer um, de qualquer idade. Ela pressente a chegada de um ser de grande poder, alguém tão poderoso quanto ela. Seu nome é Doro.Doro pressente as habilidades daquela senhora idosa e sente que precisa adicioná-la à sua vila no Novo Mundo, onde está criando super humanos. Desde que morreu há mais de 3 mil anos, Doro vem trocando de corpo, tentando criar uma raça que se aproximem a ele em poder, porém mantendo todos sob seu controle, para que melhor o sirvam. Como se fosse dono de um rebanho, Doro faz uniões, esperando que elas gerem crianças poderosas, até que eles mesmos cresçam, procriem e aumente a prole. O pensamento dele é bem mecânico nesse sentido. Dane-se os sentimentos dos outros.
Para sobreviver, Doro toma os corpos de pessoas mortas. É diferente de Anyanwu que pode mudar de aparência. Doro ocupa esses corpos, enquanto manipula seus "rebanhos" de forma a criar seres especiais. Devo dizer que logo neste começo Doro se mostra um antipático e acaba mantendo esse padrão durante a leitura. Não consegui simpatizar com ele em nenhum momento. Anyanwu, por sua vez, é desconfiada - algo que compartilhei desde a primeira página - e sente que Doro não é alguém fácil de lidar.
Logo percebemos que Doro, de fato, não é alguém fácil. Ao longo dos séculos ele pouco conheceu pessoas fora de seu círculo familiar e dificilmente conheceu alguém que pudesse chamar de igual. E também quando conhece alguém poderoso demais ou que se nega a se sujeitar a seus desejos, ele os mata sem muito remorso. A leitura é basicamente esses dois seres muito poderosos medindo forças conforme viajam para um novo continente, onde uma comunidade está aguardando. Só que Doro achava que estava tudo garantido, que Anyanwu seria alguém muito fácil de manipular para conseguir o que queria. E não é bem assim que a banda toca.
Os momentos que mais gostei de acompanhar foram com Anyanwu, com certeza, mas sinto que o estilo de Butler neste livro estava tão cru, tão imaturo, que acabei tendo dificuldade de acompanhar. Não parecia ser o mesmo livro da autora que escreveu Kindred, que foi um livro que devorei tanto em inglês quanto em português, um livro que é um dos mais importantes para mim e o que mais gostei de Octavia. Conforme ia lendo, vencendo a duras penas cada página, eu pensava "onde está você, Octavia?", porque não parecia ser escrito por ela. E ele demora a engatar, demora muito.
Não me entenda mal, eu adorei a premissa. Mesmo Doro sendo detestável é um personagem que você ama odiar e acompanhar, sabendo sobre o que se passa em sua cabeça e o que ele pensa sobre os outros. Anyanwu, por sua vez, não é idiota, ela saca quais são os planos de Doro e a ameaça para si própria. Doro é quem deveria tomar cuidado com quem está mexendo e ficamos nesse teto de zinco quente, sambando com os dois, conforme as décadas passam. O dualismo é um tema permanente em toda a leitura. Mas às vezes os diálogos não parecem conversas, parecem mais listas enciclopédicas, onde a autora se esforça em explicar e não em mostrar.
Contado pelos dois pontos de vista, isso contribui muito para o clima tenso entre os dois protagonistas. Como disse mais acima, Doro é um porre. Quer um exemplo? Quando ele descobre que algumas de suas "criações" foram tomadas por negociantes de escravos, ao invés de ficar puto porque estão tratando seus descendentes como mercadoria e com muita brutalidade, ele lamenta por tudo o que foi desfeito nos últimos séculos. Cara, sério? Mas acho que a ideia era essa mesmo.
A edição da Morro Branco segue o padrão da edição gringa e está perfeita. A tradução foi de Heci Regina Candiani e está ótima. Não encontrei grandes problemas de revisão ou diagramação durante a leitura.
Obra e realidade
Este é um livro que trabalha muito a questão da eugenia e a forma como Butler optou por conversar a respeito. Na série Xenogênese ela também trabalha o tema explorando dessa vez pela perspectiva alienígena. Doro e Anyanwu são engenheiros genéticos, por assim dizer, já que ela também passa algumas de suas habilidades adiante, ainda que de maneira mais comedida.De maneira muito engenhosa, Butler também discute escravidão e a forma como os experimentos de Doro criticam as táticas eugênicas dos Estados Unidos, um dos países em que tal tema foi bastante tolerado e discutido entre seus intelectuais. Doro é cruel, um déspota, mas foi criado de uma maneira que reflete a crueldade dos escravagistas. Ele está criando uma raça super desenvolvida, quase como um núcleo de resistência, contra a dominação vigente. O próprio relacionamento dele com Anyanwu pode ser lido sob essa ótica. Ela a controlada, ele aquele que detém o poder. E que deve ter medo quando ela se erguer em resistência.
Octavia Butler |
Octavia Butler é a grande dama da ficção científica e uma pioneira do afrofuturismo. Nos deixou cedo demais e foi publicada no Brasil apenas recentemente pela editora Morro Branco, um atraso absolutamente injustificável.
Pontos positivos
AnyanwuDoro
Bastante atual
Pontos negativos
Lento, bem lentoViolência
Avaliação do MS?
Não é um livro ruim, longe disso. Apenas sua narrativa não funcionou comigo, mas pode muito bem funcionar com você. As críticas e discussões que Butler traz para este livro são de extrema importância ainda hoje. Pretendo ler os próximos livros, espero continuar essa jornada que começou tanto tempo atrás com Doro e Anyanwu. Três aliens para o livro.Até mais!
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