Eu nunca fui uma grande fã dos filmes de Karatê Kid, apesar de achar o senhor Miyagi uma simpatia. Então foi sem nenhuma expectativa que coloquei Cobra Kai para assistir na Netflix. Eu sabia que Johnny Lawrence era o vilão, que Ralph Macchio era o mocinho e que o senhor Miyagi tinha morrido. Mas o que eu encontrei foi uma série divertida e que trata de muitos assuntos pertinentes que ainda são discutidos desde os tempos de Karatê Kid, como bullying. E se tem bullying, sempre tem um valentão por trás.
Se você ainda não assistiu às duas primeiras temporadas de Cobra Kai, evite ler o texto, pois terão alguns spoilers!
Se você ainda não assistiu às duas primeiras temporadas de Cobra Kai, evite ler o texto, pois terão alguns spoilers!
Johnny Lawrence se tornou a personificação do valentão dos anos 1980, com o cabelo loiro escorrido na testa e muita energia para liberar na forma de pancadaria. Era um garoto visivelmente transtornado, mas até Cobra Kai a gente não entendia exatamente o que acontecia com ele. O ator, William Zabka tentou se distanciar da imagem do garoto valentão alguns anos depois, já que foi confrontado por fãs na rua por seu papel de Johnny.
Então quando começamos a assistir Cobra Kai reencontramos um Johnny 34 anos mais velho, pobretão, divorciado, que bebe em demasia, dirige o mesmo carro há quase 40 anos, trabalhando em um emprego que detesta. Johnny é uma personificação de muitos cidadãos brancos médios norte-americanos, sem formação de ensino superior e que vive de bicos. Ele retrata aquele jovem rebelde dos anos 1980 que envelheceu de uma maneira que acredito que muitos senhores de hoje se viram personificados.
O que acaba com o sossego de Johnny - depois de perder o emprego - é ver o sucesso de seu arquirrival no caratê, Daniel LaRusso, um homem de família e bem-sucedido, com seu próprio negócio de revenda de carros. Claro que rola uma invejinha de Johnny ao ver Danny indo bem na vida, enquanto ele mora num pulgueiro. Mas o que vai reacender seu desejo por justiça é quando ele vê seu novo vizinho, Miguel Diaz, um adolescente latino que tenta ser seu amigo, apanhar de uns valentões da escola. Quando ele senta a porrada nos garotos, percebe que pode ajudar o garoto a se defender.
Ele então ressuscita a academia Cobra Kai, em um bairro desvalorizado e pobre, onde Miguel é seu primeiro e, por um bom tempo, único aluno. A gente teme que ele vai voltar a ser o valentão de outrora, mas sensei, como pede para ser chamado por seu aluno, acaba aprendendo muito com o garoto, que fala que suas expressões são machistas, que ele não deveria falar certas coisas. É um relacionamento muito legal e até divertido quando vemos um adolescente tendo mais noção do mundo do que Johnny.
Johnny não tem a menor noção de como conseguir mais alunos. Ele ainda é do tempo em que se distribuía cartazes por aí, até que Miguel lhe mostra o site que fez como parte de uma lição da escola. Aliás, um dos momentos mais divertidos da série é quando o sensei usa um notebook pela primeira vez e fica torrando a paciência do dono da loja de penhores onde comprou. O notebook ainda roda o Vista! Esses momentos de contato com a modernidade e com a realidade são divertidos, pois ele na certa retrata muitos caras que envelheceram mas não acompanharam o mundo.
E é esse o grande enredo de Cobra Kai. Sim, temos caratê, temos a rixa de Johnny com Danny, temos os alunos de ambos os mestres se estranhando pelas ruas, mas para mim o que mais marca é a redenção do valentão que Johnny era (não apenas Johnny, outros valentões na história acabaram amadurecendo também). Começamos a compreender porque ele e o filho não se dão bem, começamos a compreender que aquele jovem atormentado e porradeiro dos anos 1980 também tinha sua parcela de sofrimento e um padrasto rude, que achava que podia comprar os outros com dinheiro. Quando seu filho nasceu, Johnny bebeu por três dias, apavorado com a responsabilidade, de luto pela morte recente da mãe. A fim de se defender dos abusos do padrasto, Johnny se tornou o abusador dos alunos mais fracos da escola.
E se um valentão da ficção pode mudar e ser uma pessoa gradualmente melhor, significa que outras pessoas também podem. Essa é uma mensagem poderosa para os dias de hoje, onde tudo é 8 ou 80, onde uma pessoa erra e já vem o pelotão de cancelamento dizendo que a pessoa nem deveria existir. A possibilidade de mudança, de ser uma pessoa melhor, deveria ser vista como algo bom, mas quando alguém erra, parece que ela acaba pior do que era antes. Johnny erra sim durante as duas temporadas e errou ao dizer aos seus alunos do Cobra Kai que eles não deveriam ter compaixão por seus inimigos. Ele vê o efeito de tal política com um aluno que sofria bullying e acaba se tornando um valentão como ele era em sua juventude.
Mas ele também é capaz de enxergar seus erros. Muita gente hoje se recusa a mudar de ideia ou de opinião apeans para que não admitir seu erro. Johnny é capaz de reconhecer que cometeu erros e que está disposto a corrigi-los. Não deveria ser assim na vida real? Não deveríamos estar mais abertos ao diálogo e à capacidade de errar e pagar pelo erro? Foi muito salutar ver uma postura dessas em uma série que fala de rivalidade, bullying e pancadaria. É uma forma do público perceber que é possível sim ser uma pessoa melhor, amadurecer e evoluir.
Espero que a terceira temporada de Cobra Kai - as duas já estão disponíveis na Netflix - traga rostos já conhecidos de Karatê Kid e que Johnny possa continuar aprendendo e sendo uma pessoa melhor. Potencial para a mudança ele tem e já mostrou várias ao longo das duas temporadas.
Até mais!
Eu também tive uma boa surpresa com a série. Ela levanta várias reflexões interessantes sobre amadurecimento, aprendizado, mentoria e masculinidade. Na primeira temporada fica visível como Johnny é um cara que parou no tempo, descrevendo como a simples passagem do tempo não necessariamente traz a maturidade. O que ilustra a diferença entre o tempo cronológico e o psicológico.
ResponderExcluirPor outro lado, a relação entre ele e Miguel é fantástica, a descrição perfeita de como o processo de ensino/aprendizagem funciona em mão dupla. No mito do herói padrão o "chamado para a aventura" vem com um mentor, mas no caso de Johnny foi o chamado veio por meio de um aprendiz. E nesse mundo novo, com o processo de ensinar, ele vai aprendendo como seu instrumental para lidar com o mundo é inadequado e ele deve mudar. Sendo que um dos dilemas da série é que ele precisa mudar, mas como encontrar lugar nesse mundo novo sem perder sua essência?
Em paralelo Daniel encontra dilemas parecidos em assumir o manto de sensei ainda que seja governado por dúvidas muito humanas. O que mostra bem como o "viveram felizes para sempre não existe". Mesmo que você fique rico.
No aspecto mentoria, a diferença entre os dois e seus pupilos rende reflexões sobre a importância de bons mentores, o impacto dos ruins e como a orientação é importante em certos momentos da vida, como a adolescência.
Em tudo isso está a reflexão sobre a masculinidade. O que é ser homem nesse mundo novo mantendo sua essência? Como equilibrar os bônus sem os ônus autodestrutivos que Johnny já experimentou até demais?
Um adendo são detalhes da atuação ficaram bem legais. Zabka realmente está excelente, aquele sorriso contido de predador dele durante as lutas e o contraste com o sorriso desconcerta em situações sociais ficou ótimo. O Macchio (que deve dormir em formol) com os conflitos de um mestre em formação. E a própria mudança de Miguel, que muda de comportamento mas consegue manter uma essência.
E nesse aspecto a série se torna importante porque os homens (e garotos) vêem e exemplos diários de masculinidade tóxica, mas qual é a masculinidade saudável? A série me parece justamente a jornada de um homem do passado amadurecendo e construindo sua versão dessa masculinidade.
Como nem tudo gira em torno de homens, mas também sobre a mudança dos tempos. A diferença da atuação das mulheres na história, que estão longe das frágeis donzelas e merecem ter seu papel mais aprofundado. Isso também ilustra como os tempos mudaram. O mundo de hoje parece mais complexo do que o do passado, mas isso reflete como nos tornamos mais conscientes da variedade do mundo à medida que amadurecemos.
O roteiro bem amarrado e honesto ajudou e muito a passar essa mensagem de redenção e questionar a masculinidade tóxica, como já comentaram. Combinaram bem a nostalgia oitentista e a juventude ligada da internet. Tem comédia e drama em doses equilibradas. Também estou ansioso pela próxima temporada. Alias, recomendo a ver ou rever o trailer na Netflix, pois tem uma cena da terceira temporada! Fica a dica ;)
ResponderExcluirEsta é uma série que comecei a ver por pura nostalgia, e, encontrei uma pérola.
ResponderExcluirTantas discussões e um retrato sombrio de nossa época conduzida por pessoas com traumas mal resolvidos, mas sem perder a diversão.
Na segunda temporada, deu para ver que os atores deram uma treinadinha no karate, em relação a primeira! hahaha