Sempre que o assunto sobre a representatividade surge, sobre sua importância, sobre podermos ter exemplos positivos em trabalhos ficcionais, uma fenda interdimensional se abre e um incel desocupado aparece gritando e espalhando perdigotos raivosos por todo lado, dizendo que é mimimi, que esse papo é coisa recente, que antes não tinha essa "encheção de saco", que o politicamente correto está acabando com as "boas histórias". Tá certo, então. Vamos falar sobre as revistas pulp de ficção científica lá nos anos 1930, 1940 e 1950. Não é tão recente assim.
Arte de Ed Emshwiller. |
As revistas pulp (ou pulp fictions) eram aquelas revistas feitas com papel barato, fabricado a partir de polpa de celulose, que começaram a circular a partir do início da década de 1900 (aquele papel da revista em quadrinho de banca). Elas eram um tipo de entretenimento rápido e direto, onde vários escritores importantes começaram suas carreiras. É o tipo de diversão que hoje consumimos com novelas e séries de televisão. As capas eram, muitas vezes, apelativas, as histórias sensacionalistas e na sua grande maioria com protagonistas masculinos.
Em uma época conturbada como aquela do começo do século XX, com um pós-guerra traumatizante e uma crise sem precedentes em 1929, a classe trabalhadora encontrava nas revistas pulp uma diversão barata e escapista. Mas além disso, a ficção científica moderna talvez não tivesse se desenvolvido sem tais revistas, que puderam servir de meio de divulgação científica em meio às tantas inovações da virada do século.
Além de ser uma época conturbada econômica e tecnologicamente, muitas mudanças sociais vinham acontecendo com rapidez. O movimento sufragista vinha batendo na questão sobre o voto feminino, mulheres estavam entrando no mercado de trabalho, nas universidades, ocupando espaços, até então, dominados por homens. Com a ficção científica não seria diferente. Nas revistas pulps da época, o domínio masculino era tido como natural. Havia duas esferas: na esfera privada, a mulher podia co-existir com o homem, mas no que se referia à vida pública, ela deveria ser masculina. Com a literatura não foi diferente.
Ficção científica era vista como um domínio cujas fronteiras tinham que ser protegidas da influência feminina. O interesse científico, atrelado à lógica e à razão, não viam emoções e sentimentalismo, sempre atrelados à figura da mulher, com bons olhos. Então dentro de um gênero que privilegiava a ciência e as grandes aventuras especiais, era mais que lógico que não deveria haver mulheres, pois mulher era um arquétipo ligado ao interesse romântico, ao sexo e ao relacionamento. Não havia o conceito de que uma mulher pudesse ser a líder de uma viagem espacial. Colocar mulheres, romance ou cenas mais "apimentadas", segundo esses sujeitos, destruiria os enredos.
Havia também um imaginário de que o leitor de ficção científica era um leitor "acima da média", um leitor que era "melhor do que os outros". Juntando com a misoginia e o desprezo pelo feminino, esses caras eram o que hoje nós chamamos de incels. Mulheres eram aquelas dotadas de um sexo, enquanto os homens eram o padrão da humanidade, a definição de humano.
Porém, essa ideia de que mulheres eram inimigas da ficção científica não existia sem ser questionada e debatida pelas leitoras de FC. Sim, elas liam as revistas pulps, afinal na classe trabalhadora, não havia apenas homens. E elas escreviam para os editores destas revistas questionando os editoriais e as histórias que liam. A Peggy Kaye, de Dorchester, por exemplo, esbravejou em uma carta:
O que acontece com esses homens que não querem interesses românticos nem imagens [de mulheres] nas histórias que eles leem? Estão tentando se convencer de que homens são os únicos que de fato importam na existência? Ou eles usam HOMEM como a única referência para seres inteligentes no planeta?
Startling Stories, 26, nº3 julho de 1959
Durante os anos 1950 cresceu muito os pedidos por mais mulheres, por mais histórias de romance, dentro dos contos das revistas de ficção científica. Os pedidos das cartas, basicamente, eram de a FC precisava amadurecer e aceitar que relacionamentos, que sexo, faziam parte da vida tanto de uma pessoa, mesmo um cientista ou um escritor e que não podia deixar de ilustrar a humanidade dessa forma caso o público quisesse.
Mesmo antes de 1950 já havia reclamação a respeito. Alguns argumentavam que se você quisesse algo com mais romance, as revistas "spicies" já existiam desde os anos 1930. Mas por que a ficção científica estaria proibida de ter romance e sexo caso o público quisesse ler? Por que uma mulher não poderia ser a líder de uma expedição a um outro planeta? Muitas leitoras não entendiam a relutância.
Alguns autores, como Isaac Asimov, acreditavam que não era necessário colocar mulheres nos enredos, eles funcionam bem sem elas. Ele, assim como outros escritores e editores da época, entendiam que mulher era sinônimo de interesse romântico e não de uma boa personagem. Portanto eles não viam função para elas em seus contos, sempre protagonizados por homens (parece um bando de ferengi reclamando que as "fêmeas" querem o direito de usar roupas e de ganhar lucro, afff). História boa era história sem mulher.
Muitas mulheres escreveram para as revistas, argumentando que nem elas gostariam de ver mulheres apenas em posição de "interesse romântico", elas queriam ser as protagonistas dos contos. Queriam a posição de destaque sem que isso desmerecesse o fato de serem mulheres. Mary Evelyn Byers não poupou críticas a Asimov:
Ao seu apelo por menos besteira [os romances], dou meu apoio de todo o coração, mas menos besteira não significa menos mulheres; significa uma forma diferente de introduzi-las na história e no papel que desempenham. Deixe o Sr. Asimov virar as páginas de um bom livro de história para ver quantas vezes a humanidade impediu o progresso; que ele também observe que quaisquer mudanças feitas pelas mulheres foram mais ou menos permanentes, e que essas mudanças geralmente foram feitas contra o preconceito e argumentos ilógicos dos homens, e mude de postura.
(...)
Ele provavelmente ainda valoriza a teoria ultrapassada de que o cérebro de uma garota é usado expressamente para preencher o que de outra forma seria um vácuo no crânio.
Astouding Science Fiction, dezembro de 1938
Já a Naomi Slimmer resolveu mostrar ao editor que sim, mulheres liam aquelas revistas e elas queriam ser protagonistas e ser tratadas com respeito:
Tem duas donas de casa, uma secretária, uma garota do ensino médio e duas enfermeiras formadas entre nós, cinco irmãs, e todas nós lemos a Science Fiction (quando conseguimos pegar da mão do irmão e dos maridos). De comum acordo, saudamos sua nova revista com gritos de alegria e nos revezamos embolados sobre essa maldita coisa. (...)
Lemos a Science Fiction para nos ajudar a imaginar como será o mundo nos próximos anos ou para ter a ideia de alguém sobre a vida em um mundo diferente. Nós sabemos como é a vida atual nesta Terra (é uma bagunça! E a ficção científica é a única maneira de esquecermos esse fato por alguns minutos). Quanto aos enredos das histórias científicas, mantenha-os simples e diretos. Se quiséssemos ler sobre ❝curvas rosadas e túmidas, bochechas com covinhas coradas e corações pulsantes apaixonados❞, poderíamos obter uma cópia de uma das ❝spicies❞. Se você tem que ter uma mulher na história, faça-a sensata. Deixe-a saber algumas coisas sobre naves espaciais, armas de raios e coisas assim. Não dá mais pra aguentar mulheres que estão sempre tendo suas roupas rasgadas e dirigindo um olhar amoroso para o pobre e cansado herói.
Revista Science Fiction, junho de 1939
Naomi, sinto sua indignação.
Ou seja, quando a gente bate nessa tecla de maneira quase automática e repetidas vezes é porque ainda precisamos de representatividade. E vale lembrar que essas pessoas eram brancas, heterossexuais. Quantos mais recortes fizermos, maiores serão as injustiças e a falta de representação coerente e respeitosa. Se as mulheres brancas, nos anos 1930, 1940 e 1950, já estavam incomodadas com a forma com que as mulheres eram representadas nessas revistas, o que dizer de homens e mulheres negros, que nunca tinham espaço?
A década seguinte, em 1960, viu surgirem histórias que quebravam vários padrões. Daí em diante nós teríamos a Ursula K. LeGuin, Octavia Butler, James Tiptree Jr., Judith Merril (que já publicava nos anos 1950), Joana Russ, entre outras que começaram a pensar sobre a ficção científica de maneira diferente e que reproduzisse enredos que de fato pudessem ser representativos. E ainda se luta muito para conquistar espaço quando vemos o saudosismo na entrega do Hugo, com o Martin enaltecendo uma época onde mulheres eram vistas como inimigas do gênero.
Se você quiser ler mais sobre o assunto, recomendo a leitura de The Battle of the Sexes in science fiction, da Justine Larbalestier, editora Wesleyan, 2002 (foi a tese de doutorado de Justine, inclusive). Existem muitas outras cartas que a autora reproduziu no livro, debatendo a misoginia dessa era tida de "ouro" da ficção científica.
Até mais!
Eu tava pensando sobre isso esses dias. Acho interessante que Asimov fala que não escrevia mulheres nos seus primeiros livros porque não tinha tanto contato com mulheres para saber escrevê-las.
ResponderExcluirEm Os Próprios Deuses ele escreve uma ótima personagem tratada em pronomes femininos, a Dua. Mas ela tem, olha só, a personalidade e interesses de outro gênero, que não é o seu.
Minha impressão é que Asimov finalmente descobriu que "personalidade" não é algo dividido por gênero, e escreveu uma história o objetivo da protagonista é justamente se rebelar contra os papéis de gênero na sua sociedade. Para mim, não só a primeira personagem feminina de Asimov com alguma personalidade, mas o único personagem dele com alguma complexidade, independente de gênero.
Asimov primeiramente não sabia escrever personagens com "personalidade feminina". Sem saber que era óbvio, foi lá e fez. E traduziu essa história de uma forma até interessante, utilizando os papéis de gênero como algo a ser combatido. Claro que teria sido mais interessante uma história aonde papéis de gênero não existissem mais, mas né. É o que tem pra hoje. :/
A sua matéria me fez lembrar das revistas Heavy Metal, e a forma hipersexualizadas das personagens femininas, ao ponto que mais parecia uma HQ pornográfica muito mal escrita (e bem escrota para falar a verdade), do que FC.
ResponderExcluirOi, Sybylla, adorei o texto. Quando eu era mais nova eu lia muito dessas revistas pulp brasileiras das coleções de pai e avô, até hoje eu levo com carinho o tipo de plot cheio de clichês e é uma das minhas referências favoritas, mas realmente muito machistas, gosto do formato, mas não tanto da forma RS. Uma pergunta, sabe se tem algo da Joana Russ em ptbr? Obrigada
ResponderExcluirOiê!
ExcluirInfelizmente não. Talvez em Portugal, mas por aqui acredito que ela nunca ganhou tradução.