Ler os livros da Svetlana sempre desperta emoções poderosas. Reconstruindo eventos históricos importantes do bloco soviético, a autora resgata as falas de suas testemunhas, de agentes que tiveram participação ativa nos eventos, aqueles que lutaram, choraram, perderam pessoas, parentes e a própria inocência. Meninos de Zinco é mais um daqueles livros que a gente termina a leitura para depois pensar na estupidez da guerra, na ignorância humana, no sangue de inocentes e de inocentes transformados em monstros.
O livro
Eu queria ser um herói, buscava uma ocasião para me tornar um herói. Saí no segundo ano. Falavam... Eu escutava... Diziam que era uma guerra de meninos... Quem estava combatendo eram meninos que pouco antes estavam no décimo ano. Na guerra é sempre assim. Na Grande Guerra Patriótica também foi assim. Para nós, é como um jogo. É muito importante que você tenha seu amor-próprio, seu orgulho.
Diferente do que lemos em A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, onde temos os relatos de testemunhas da Segunda Guerra Mundial (ou Grande Guerra Patriótica como era chamada na União Soviética), aqui temos uma Svetlana que esteve no Afeganistão e viu a ação em primeira mão. Admito que foi um livro muito difícil de ler, tal como os outros, por conta da crueza e das diversas emoções relatadas.
São mães que perderam seus filhos na guerra ou que o viram se transformar em algo que não conseguiam mais reconhecer. São soldados que foram para o front acreditando que a guerra nada mais era do que ajudar o povo afegão a construir uma nova sociedade, mas chegaram a um lugar onde até um pertence simples como um cinto ou um par de meias era roubado e vendido nas vilas afegãs em troca de bebida, de cigarro, de um chocolate.
Nosso sistema é este: ferram com você no Exército e na vida civil. Você caiu no sistema, assim que te fincarem os dentes você vai ser serrado em pedaços, não importa que seja bom, que sonhos tenha em sua alma.
Não foram só os soviéticos que Svetlana ouviu. Ela entrevistou um menininho afegão, brincando com um ursinho de pelúcia com os dentes, pois ele perdera os dois braços quando soldados soviéticos atiraram nele. E a história dessa mãe? E seu relato? Isso não temos nos livros de história. Além dos relatos das pessoas que viram e viveram a guerra, Svetlana nos dá a sua versão, suas anotações, sua interpretação do que vê, em como não nota mais a indignação em certos oficiais quando soldados são mortos a cada momento. Como puderam se tornar insensíveis?
Entre os relatos há muitos de soldados e oficiais que diriam que voltariam para o Afeganistão se ele fosse chamado de novo. É muito comum que soldados, ao voltarem para suas casas, passem a ter problemas em voltar à rotina, de se encaixar em um lar, de conhecer os filhos ou de reaprender a amar a esposa, os pais e irmãos. A guerra tomou deles a ingenuidade, tomou o espírito e os enterrou nas terras secas do Afeganistão, puxando-os de volta ao menor pensamento sobre o conflito.
Os relatos mais dolorosos são das mães, lembrando de como criaram seus filhos com amor, carinho, como se desesperam por confessar que o filho preferido tinha ido para a guerra e ele acabou voltando em um caixão de zinco lacrado. Meninos quase imberbes embarcando no que diziam ser uma grande aventura para plantar o comunismo em terras afegãs não passou de um banho de sangue.
O ser humano já consegue ir para o espaço, mas também mata os outros como fazia há mil anos.
Meninos de Zinco completa a lista brasileira de obras publicadas pela autora até agora. Ele foi originalmente publicado em 1991, apenas dois anos depois do fim da Guerra no Afeganistão, quando os relatos e as dores eram todos muito recentes. Este livro é o que foca em um evento mais recente quando comparado aos outros e Svetlana inclusive enfrentou processos judiciais por conta dos relatos e da exposição do que acontecia de verdade nas batalhas e a crua atuação soviética no país.
A Guerra no Afeganistão mobilizou mais de 500 mil soldados, sendo que destes cerca de 15 mil (ou mais) não voltaram para casa ou foram devolvidos às famílias em caixões de zinco lacrados. Muitas famílias sequer puderam se despedir de seus entes queridos ou os viram se transformar em pessoas distantes, frias e indiferentes, alguns deles matando ou cometendo suicídio ao longo dos anos.
O livro segue o mesmo padrão de publicação dos anteriores. A tradução ficou na mão de Cecília Rosas e está ótima. Como li a versão em ebook, não sei dizer como está a edição física, mas não encontrei problemas de revisão ou diagramação nele.
Obra e realidade
Svetlana disse que não se cansa de surpreender com o quão interessante é a vida de uma pessoa comum. E pense a respeito: quantas histórias incríveis cada um de nós tem para contar? Quando paramos para ouvir o outro, aprender sobre sua vida e como é sua luta diária, conhecemos enfim aquele indivíduo, não uma mera caricatura ou um estereótipo. Conhecemos alguém. E como qualquer um, temos nossas dores e nossos momentos difíceis, onde a esperança parece ter nos abandonado.Depois de ler todos os seus livros publicados em português, fiquei pensando como seria um livro com o relato dos sobreviventes em Brumadinho, em Mariana, os jovens da Boate Kiss (sim, eu conheço o livro da Daniela Arbex), os jovens metralhados enquanto voltavam de uma comemoração no Rio de Janeiro, o pai de família que tomou 80 tiros dos militares do Exército. Reconstruir tais eventos pela perspectiva que realmente interessa, seus sobreviventes e parentes de vítimas, é o que deveríamos de fato estar fazendo.
Svetlana em Cabul, 1988. Acervo pessoal. |
Svetlana Aleksiévitch é uma escritora e jornalista bielorrussa, ganhadora do Nobel de Literatura em 2015. Lecionou e escreveu em revistas e jornais da Bielorrússia e Ucrânia, dedicando-se ao estilo de novela coletiva, onde ela justapõe testemunhos individuais para se aproximar o máximo possível da substância humana de eventos e acontecimentos históricos.
Pontos positivos
Pesquisa e entrevistasRelatos de sobreviventes
Fatos reais e brutais
Pontos negativos
Violência
Avaliação do MS?
Tive que parar de ler o livro à noite e ler de dia, intercalando com outras leituras, pois eu comecei a ter problemas para dormir. São relatos crus, cruéis até, dolorosos, relatos de pessoas transformadas em monstros em amor à pátria. Svetlana também foi testemunha e seu relato completa o livro que se mostrou tão impactante quanto os anteriores. Leia. Acompanhe os relatos dessas testemunhas. Elas lhe dirão como foi o conflito e como sobreviveram. Leitura essencial e obrigatória!Até mais!
Eu quero ler tudo que Svetlana Aleksievitch escreve! Magnífica!
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