Uma reclamação que andou rodando pelas redes sociais a respeito de Star Trek Discovery é sobre a presença de um cadeirante circulando pelos corredores da nave. Algumas pessoas acharam esquisito que no século XXIII a medicina não teria avançado tanto a ponto de trazer os movimentos das pernas de uma pessoa de volta. E é claro que daí para o "mimimi do politicamente correto" foi um passo. Mas não só a reclamação é descabida como esse não é o primeiro cadeirante a aparecer em Star Trek e não sei qual é o problema de mostrar cadeirantes atuando como membros ativos de uma tripulação.
Somente o capitão Pike já apareceu em cadeira de rodas duas vezes pela franquia, na Série Clássica e no Abramsverse, depois da tortura sofrida nas mãos dos romulanos. Não apenas ele, mas o almirante Mark Jameson também apareceu em um equipamento semelhante ao de Pike, na primeira temporada de a Nova Geração. E apesar de todos os avanços da Federação na área médica, ela ainda não consegue impedir a morte, as amputações, lesões medulares ou cerebrais. Vedek Bareil sofreu sérias lesões no cérebro depois de um acidente ao desembarcar na estação e mesmo com os avançados equipamentos à sua disposição, Bareil nunca mais seria a pessoa de antes.
Capitão Picard e seu coração artificial, Nog e seu ferimento de guerra que o levou a ter uma perna artificial, Riva e seu coro especial para contornar a surdez, o visor especial de Geordi LaForge. Todos são casos de personagens com algum tipo de deficiência ou problema de saúde que trabalhava normalmente. Dizer que é "mimimi do politicamente correto", que é "irreal" é no mínimo desconhecer a própria franquia e ser bem capacitista. Nenhuma dessas pessoas reclamou dos degraus nas pontes da Enterprise da Série Clássica, da Voyager e da própria Discovery, nave onde trabalha um cadeirante? A Nova Geração é a única sem degraus e com rampas.
Mas acredito que a personagem de Melora Pazlar, que apareceu em Deep Space Nine, segunda temporada, no episódio Melora (31 de outubro de 1993) e depois nos livros da série Titan, seja a melhor forma de mostrar que não, isso não é mimimi. Este foi o episódio que mais diretamente lidou com a falta de acessibilidade e o capacitismo dos dias atuais dentro de Star Trek. E note que desde a estreia do episódio até os dias atuais, os desafios dos cadeirantes permanecem.
Melora é originária do planeta Elaysia e a primeira de seu povo a entrar para a Frota Estelar. A gravidade de Elaysia é menor do que a gravidade padrão da maioria dos planetas da Federação. Tendo evoluído e se adaptado a um ambiente de baixa gravidade, é uma verdadeira tortura para Melora viver em um ambiente como o da estação DS9. Ela precisa se locomover através de uma cadeira de rodas e tem um equipamento ligado no corpo, semelhante a um exoesqueleto, para ajudar seus músculos, tão penalizados pela gravidade maior.
Como DS9 não é uma estação construída pela Frota Estelar, e sim pelos cardassianos, ela tem vários problemas de acessibilidade para Melora. Chefe O'Brien instalou rampas em várias passagens principais da estação, enquanto o doutor Bashir replicou uma cadeira de rodas de acordo com as especificações enviadas com antecedência. Ainda assim é torturante ver Melora se arrastar na gravidade maior da estação e é muito natural vê-la na defensiva, pois muitos a tratam como se ela fosse doente ou incapaz.
— Me desculpe se eu pareço sensível demais. Mas estou acostumada a ser deixada de fora do ❛problema Melora❜. A verdade é que não existe um ❛problema Melora❜, até as pessoas criarem um.
Doutor Bashir oferece então uma alternativa para a cadeira. Era uma terapia experimental, mas que poderia ajustar os músculos e os nervos de Melora para a gravidade padrão. A questão é que ela precisaria de vários tratamentos e não poderia mais voltar para seu planeta. É como se Melora fosse obrigada a escolher entre dois mundos, e sentindo que deixaria de ser quem era, que deixaria de ser elaysiana, ela desiste dos tratamentos com Bashir. Ela pode ser independente dentro do possível e continuar trabalhando sem abrir mão de quem ela é.
Pessoas com deficiência são competentes e inteligentes, pois isso independe, por exemplo, de uma cadeira de rodas. Melora não quer ser tratada como doente, porque ela não é. Ainda assim, pessoas com deficiência precisam provar suas habilidades o tempo todo, apenas por estarem numa cadeira de rodas, por terem uma perna artificial ou por serem surdas. O episódio questiona o capacitismo da sociedade cardassiana, que criou degraus e obstáculos nos corredores, o que a impedem de passar com a cadeira, levando-a a cair e se machucar em um determinado momento.
Uma coisa que precisamos entender sobre a filosofia da Federação, que nos faz entender a decisão de Melora, é que ela tem um profundo medo de tudo o que possar mudar a essência dos indivíduos e nosso livre arbítrio. Não é coincidência que o maior inimigo da Frota Estelar é a raça dos Borg, que leva o transumanismo (h+) a um novo nível em busca da perfeição, mas para isso se vale da supressão de nossa individualidade. Picard, por exemplo, nem se sente confortável em deixar as pessoas saberem que ele tem um coração artificial, implantado depois de uma briga de bar com os nausicanos, temendo talvez que pensem nele de maneira diferente.
Note que nesta cena nós temos a perspectiva de Melora, que está na cadeira |
E Star Trek é sobre isso, sobre nós humanos, falhos e beligerantes, capazes de infinitos atos de bondade e crueldade. Nós não estamos vendo uma série por uma máquina do tempo, mostrando a humanidade no século XXIV, estamos vendo uma metáfora para os problemas da raça humana em uma série de ficção científica. A dificuldade de Melora de passar com sua cadeira por um corredor da estação não é diferente do que um cadeirante tem que aguentar todos os dias pelas ruas das cidades, esburacadas, sem rampas ou passagens, estreitas demais, com degraus, ou até mesmo inexistentes.
A série não faz mais que sua obrigação de mostrar casais gays, pessoas com deficiência, negros e mulheres trabalhando normalmente nas naves da Frota Estelar. Porque a raça humana não segue um padrão único de existência. Esse padrão foi criado socialmente e pode muito bem ser desconstruído.
Vida longa e próspera!🖖
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Pessoas com deficiência e ficção científica
O mais legal que na Discovery mostrou o cadeirante ali, sem nada de mais, apenas como algo imersona na rotina. Pode ser algo temporário para um tratamento mais longo, pode não ser, pode ter sido uma situação parecida com a Melora, ou não, N coisas. Mas é uma pena que ainda algumas pessoas se incomodaram (como li em outro blog) e isso ainda gere debate em dias como hoje.
ResponderExcluirE se um cadeirante já gera debate, imagina outras pessoas que necessitam mais ainda de inclusão?
Bem, em algum planeta, bem perto de nós, o presidente-rei está vetando uma tripulação inclusiva e demitindo o diretor de arte de marketing da nave.