A "benéfica" invasão alienígena de A Hospedeira

A Hospedeira é um filme de invasão alienígena, baseado no livro de mesmo nome, de Stephenie Meyer, que é visto apenas como um triângulo amoroso e por isso muita gente não percebe as discussões sob o verniz do romance. É por isso que o título tem o "benéfica" entre aspas, porque apesar da pacificação do planeta, a invasão suprimiu um dos aspectos mais importantes da natureza humana: nossa identidade.

A benéfica invasão alienígena de A Hospedeira

A informação que a Terra foi pacificada já nos é dada logo no começo do filme. Pobreza, miséria, doença, ganância, tudo isso acabou. Você tem acesso a comida, remédios, água potável, moradia, tudo. E de graça. Não há lucro e busca por dinheiro desenfreadamente. Só que você não é você. Os seres humanos foram parasitados por seres alienígenas que lembram águas-vivas fofinhas, chamados Almas, e os aliens são facilmente identificáveis pelos olhos, que parecem ter sido eletrificados.

Num post distante chamado Invasões alienígenas, um coloquei A Hospedeira na categoria da invasão de infiltração porque o planeta não foi destruído por grandes batalhas cheias de tiro, porrada e bomba. Aliás, tudo parece mais limpo e bem conservado do que se tivesse sido cuidado por nós. As pessoas são gentis - a maioria pelo menos - elas emprestam veículos para completos desconhecidos, pois os aliens confiam uns nos outros. O planeta está a salvo da ação humana.

A gente não tem muito o que dizer sobre a ação humana no planeta. Estamos há séculos crescendo e ocupando a superfície terrestre, desmatando, consumindo e dilapidando os recursos naturais cada vez mais. Criamos condições ambientais desastrosas, secamos mares, drenamos lagos e rios, furamos a camada de ozônio e estamos atravessando um período de profunda alteração climática que não tem mais volta. A pergunta é: você abriria mão de sua identidade e sua individualidade pelo bem comum?

Esta é uma questão difícil de responder. Todo dilema ético que lida com nossa liberdade, individualidade e identidade é espinhosa, pois mexe com direitos humanos básicos. Se você não tem o direito de ir e vir, nem de expressar sua individualidade, mas pode salvar o ambiente em que você está, pode salvar a civilização, estamos com o dilema do individual versus o coletivo.

O ser humano se diferencia dos outros animais do planeta por ser capaz de criar cultura, civilização, de ter livre arbítrio e expressar uma identidade individual. Vemos pela história inteira da nossa espécie como outras culturas podem causar um pavor imenso em outras pessoas, como muitas foram apagadas da existência, pessoas transgressoras para sua época tiveram sua vida manchada por boatos maldosos (como Cleópatra e Maria Madalena), vemos como culturas foram absorvidas por outras e então ressignificadas.

A Hospedeira gera essa discussão da questão de identidade e independência e como a raça alienígena escravizou os seres humanos numa suposta salvação do planeta de nós mesmos. Não vou defender nossa espécie, pois a gente sabe que é inútil tentar diante de tanta bosta que a gente faz. Mas vemos que os humanos estão desesperados para manter sua individualidade, até mesmo tentando o suicídio. Quando a Buscadora é finalmente extraída da humana que ela possuiu, ela revela como ficou anos presa e gritando na mente alienígena, implorando para sair.

Buscadora, interpretada pela atriz Diane Kruger
Buscadora, interpretada pela atriz Diane Kruger

É uma pena que o filme (imagino que o livro também) foque no tesão que a humana e a Peregrina (Peregrina é o alien que parasitou a garota, chamada Melanie Stryder) sentem por caras diferentes. Isso tirou boa parte da discussão do filme e as implicações da perda da identidade humana. Existem momentos em que vemos humanos lutando para sobreviver à invasão, vendo que os aliens são todos parasitas que tomaram seu planeta. Mas a própria transgressão da Peregrina em ouvir a garota e a ajudá-la a encontrar a família, mostra que nem todos os aliens estão de pleno acordo uns com os outros; vemos o próprio médico cuidando da Melanie no começo, falando para Buscadora que a Peregrina ainda não estava pronta para um interrogatório.

Há também a questão tecnológica: as Almas provavelmente se apossaram de toda a tecnologia que usam. É avançada e moderna, trata ferimentos rapidamente, eles viajam em cápsulas para outros sistemas estelares, mas acho difícil de acreditar que uma raça alienígena parasita de fato desenvolva algo. É mais provável que eles tenham possuído tantos mundos diferentes que tenham se apossado da ciência e tecnologia deles. Quem sabe eram um simbionte de outra raça, onde viviam em harmonia e depois saltaram para parasitar outros mundos?

Um outro fator que gosto muito no filme é o fato de não termos aliens humanoides. Entendo a questão dos custos e maquiagem, e coisa e tal, mas foi uma maneira criativa de retratar alienígenas e que funciona como metáfora para possessão e perda de identidade, que deveria ter sido o foco inteiro da narrativa ao invés de tesão mal resolvido.

Não consigo imaginar como deve ser ficar presa em sua própria mente, gritando para sair, incapaz de controlar seu corpo, enquanto você é parasitada por um ser alienígena. Também não consigo responder à questão sobre salvar o planeta e perder a identidade ou continuar fodendo com tudo, mas mantendo nossa consciência e individualidade. As Almas não forneceram um acordo e nós possivelmente entregaríamos populações vulneráveis para que eles parasitassem se nos fossem dadas escolhas. O que fazer então? Como proceder? Questões complicadas de responder.

Até mais.

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Comentários

  1. Eu amo esse livro e sou julgada por muitos pelo preconceito que envolve o nome da autora, mas vale muito a pena. O filme simplifica muitas questões do livro, Melanie e Peregrina tem muitas conversas internas sobre esse dilema 'aliens salvando a terra dos humanos', as conversas da Peregrina com o tio de Melanie são bem mais aprofundadas, etc. Recomendo muito :)

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  2. Tu não chegou a ler o livro? Eu abri essa matéria a partir do twitter como se tivesse achado água no deserto porque nunca consegui deixar de pensar nele como meu livro preferido e vejo muito pouca gente falando a respeito. Realmente a questão da perda da individualidade não é tão discutida, mas a Peregrina fala muito mais sobre as outras invasões das almas, a vida delas em outros planetas (inclusive é minha parte preferida, então é óbvio que não ia estar no filme)... A tecnologia que elas usam foi, sim, criação própria, mas a partir do momento em que passaram a parasitar e puderam ter mãos que construíssem o que eles precisavam.

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