Resenha: Vox, de Christina Dalcher

A premissa desse livro é aterrorizante, mas a metáfora apresentada é muito próxima dos nossos dias: em um país - Estados Unidos - tomado pelo fundamentalismo cristão, as mulheres perderam seus direitos. E também uma habilidade básica de qualquer ser humano: a fala. Qualquer palavra a mais e você toma um choque, tal como aquelas coleiras que dão choque em cães que latem demais.

O livro
Jean McClellan é mãe, esposa, mulher e uma ex-cientista especialista em neurolinguística. Ela não pode mais trabalhar, nem ler, escrever, dirigir, nem mesmo falar. Todas as mulheres, incluindo as crianças pequenas, usam contadores na forma de braceletes no pulso. O limite diário é de apenas 100 palavras. A cada palavra falada a mais e a mulher toma um choque que vai aumentando de intensidade.


Uma mulher fala em média 20 mil palavras ao dia. Você consegue pensar em como seria sua vida se falasse apenas 100? Jean tem que pensar em cada palavra dita, cada vontade suprimida, cada xingamento que ela gostaria de fazer. A maior preocupação de Jean é com sua filha mais nova e com o seu desenvolvimento, com sua autonomia, com sua capacidade de falar. Sendo a cientista que é, ela sabe que todo o desenvolvimento de sua garotinha estará comprometido se ela for impedida de falar. Aqui está algo muito interessante: a própria autora é cientista da área, então o que ela fala é muito sério. Se as crianças não forem estimuladas para a fala no tempo correto, toda a sua vida ficará impactada.

O golpe fundamentalista chegou e Jean se recrimina por não ter percebido. Sua amiga feminista Jackie sim. Ela foi em passeatas, em eventos, fez cartazes, mas sua amiga Jean achava que era exagero, enquanto estudava para as provas. Quando o novo governo começou a tirar as mulheres de seus empregos, a revogar seus passaportes, a impedi-las de ter contas em bancos, já era tarde para Jean protestar.

Minha culpa começou duas décadas atrás, a primeira vez que deixei de votar, as várias vezes em que eu disse a Jackie que estava ocupada demais para ir às marchas ou para fazer cartazes ou para ligar para um congressista.

tradução livre

Jean olha para o marido, que é médico e membro da elite do governo, com desgosto. Não é que ele seja uma má pessoa, é só alguém que não se compromete exatamente com as causas. Ele trabalha dez, doze horas por dia, já que sem as mulheres na outra ponta das relações trabalhistas, eles precisam cumprir várias horas. Mas quando Jean é a única profissional que pode ajudar o irmão ferido do presidente, ela recebe uma licença especial para poder falar e trabalhar. E enquanto conversa com o marido, ele reclama em voz alta que preferia quando ela não podia falar.

Esse é o verdadeiro perigo, quando as pessoas começam a se acostumar com as situações, a lentamente absorverem o conteúdo, adaptando-se à nova ordem e achando justificativa para tudo. Um dos colegas de Jean no novo laboratório dá um esporro nela um dia em que Jean não tinha com quem deixar sua filha. Ele diz que é essa a diferença entre os tempos atuais dos passados. A mulher sempre tinha uma desculpa para deixar o trabalho de lado: um filho doente, uma cólica. Jean só faltou esganar o sujeito e sinceramente eu também.

Outra preocupação de Jean é seu filho mais velho. A autora coloca cenas de um ano antes em vários momentos, antes da vida mudar drasticamente, onde aulas de teorias fundamentalistas cristãs começaram a aparecer nas escolas. O que parecia inócuo, inocente, começa a surgir aqui e ali e Jean se revolta com isso, mas seu marido não acha um problema. Um ano depois, seu filho mais velho é totalmente a favor do novo sistema e chega a tratar a mãe como uma empregada, dizendo que a função de cuidar da casa é da mulher e não de todos os moradores.

Li o ebook em inglês, mas a editora Arqueiro está trazendo o livro em português e ele deve ser lançado em outubro. Então, aguarde a tradução! O livro me assustou pela forma como trabalha o silenciamento feminino. Ele não está tão distante daquele cara que diz que lugar de mulher é no fogão. Nem do cara que chama de mal comida a feminista que aponta um comportamento nocivo. O livro apenas eleva isso à décima potência, um "e se..." apavorante. E não podemos esquecer da figura de Anastácia, a escrava silenciada e obrigada a usar uma máscara que tapava sua boca.

A escrita em si deixa a desejar em alguns momentos. A autora passa muito rapidamente por algumas situações, como as explicações científicas ou um pouco mais sobre o relacionamento de Jean e Jackie e o final fica meio em aberto para alguns personagens. Ele tinha espaço para ser bem mais robusto do que é e dar uma explicação maior para certos eventos.

Obra e realidade
Existem vários paralelos que a autora deixa de propósito no livro, como por exemplo, dizer que o presidente anterior era negro, fazendo alusão ao Obama e à administração atual de Trump. O que de fato chama a atenção é mostrar como pequenas mudanças vão aparecendo, as pessoas não percebem ou acham que são ótimas para a sociedade e para "salvar a família", e quando veem as meninas estão usando orgulhosamente seus braceletes.

Christina Dalcher

Eu gostaria que esse livro não ficasse restrito apenas às leitoras. Quero que os homens o leiam, que leiam outros livros que mostrem distopias feministas para que eles tentem entender como o mundo será muito pior para nós com políticas retrógradas, com fundamentalismo e uma suposta ameaça à família com a autonomia feminina. E que eles também precisam ser agentes de mudança para um mundo melhor para todo mundo, não apenas para eles. Um mundo em que metade da população não pode falar é um mundo atrasado, um mundo que não é tão distante se pensarmos que há países onde mulheres não podem mostrar o corpo, ou trabalhar sem autorização do marido, às vezes nem dirigir.

Uma coisa que aprendi com Jackie: não se protesta contra aquilo que você não vê chegando.

tradução livre

Pontos positivos
Protagonista feminina
Linguística
Feminismo e protagonismo
Pontos negativos
Não tem em português (ainda)
Alguns fatos e personagens rasos

Título: Vox
Autora: Christina Dalcher
Editora: Berkley (Penguin Ramdon House)
Páginas: 336
Ano de lançamento: 2018
Onde comprar: Amazon em inglês (mas já tem em português!)

Avaliação do MS?
Este é um daqueles livros que servem de alerta. A autora pegou o cenário atual dos Estados Unidos e mostrou o que a radicalização, o que supremacistas no poder podem fazer caso tenham a oportunidade. E se não lutarmos para combater isso, também somos coniventes com a situação em que nos encontramos. Mesmo com os problemas da narrativa, foi uma leitura muito necessária e dolorosa. Quatro aliens e uma forte recomendação para você ler também.


Até mais!

Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Incrível como a história desse livro me fez ver semelhanças entre sua história e a recente mudança que o Brasil vai sofrer com esse novo governo, espero sinceramente que essas semelhanças fiquem apenas na minha imaginação

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  2. Ao ler essa resenha me veio a mente "O Conta da Aia". Não sei se a autora se inspirou ou realmente a doutrina cristã está se modificando e virando algo que ela não é. Como cristã me preocupo como as pesssoas enxergam a Bíblia, eu sei que se isso acontecer é algo totalmente malefico e fora do que o cristianismo é! Eu dou valor a esse tipo de alerta e claramente irei ler, primeiro pq amo didtopias, depois pelo assunto em sí e para poder comparar com o outro livro.

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  3. Esse livro é muito forte. Intenso. A história é assustadora por ser possível demais.

    Vidas em Preto e Branco

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  4. Eu vi num calendário da Arqueiro e já tinha ouvido alguém comentar, quero ler...fiquei: nossa, que soco!

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  5. Sua resenha está perfeita e seus desejos finais também são meus. Que esse livro e muitos outros do gênero alcance mais e mais pessoas e com isso tenhamos um mundo mais pensante e menos acomodado. Obrigada.

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