Resenha: Mudbound – Lágrimas sobre o Mississippi, de Hillary Jordan

Pensa em uma resenha difícil de fazer? Fiquei digerindo esse livro por dias e dias depois de concluir a leitura, pensando nos diversos temas que a obra de Hillary Jordan traz. Racismo, misoginia, xenofobia, violência, paixões impossíveis, amizades proibidas. Algumas pessoas chegaram a dizer que este livro é sobre amor. Não, ele na verdade é sobre traição. Em todos os níveis.



Parceria Momentum Saga e
editora Arqueiro



O livro
Nós começamos a jornada com um funeral. Os irmãos Jamie e Henry estão cavando uma sepultura, tentando fazer isso antes que chova. A região do delta do Mississippi sofre com inundações e chuvas torrenciais, por isso o trabalho é difícil. Cada personagem é um narrador distinto, por isso entramos em suas vidas, suas lutas pessoais, seus medos e preconceitos. Aliás, preconceito é um fio norteador do livro, pois é basicamente por causa dele que toda a desgraça acontece.


Laura é quem conduz boa parte da narrativa. Uma solteirona, olhada com pena pelas irmãs e que conhece Henry, engenheiro, com quem se casa não exatamente por amor, mas talvez para dar um rumo em sua vida. A rotina doméstica a consome quase que completamente, em especial depois do nascimento das filhas. A vida de Laura estremece quando ela conhece o irmão mais novo do marido, o charmoso Jamie, piloto de aviões. A Segunda Guerra Mundial corre solta pela Europa e os tempos não são dos mais fáceis.

O sul dos Estados Unidos ainda é marcado pelo racismo e pela segregação. Adaptado para o cinema, a diretora e roteirista do longa, Dee Rees, declarou que a pertinência do filme para os dias de hoje, 70 anos depois, é porque nada mudou para a população negra. Henry obriga Laura a se mudar para uma fazenda lamacenta e com quase nenhuma comodidade para a família, onde moram algumas famílias negras que trabalham na lavoura. Entre elas está a família de Ronsel, que está na Segunda Guerra, longe dos pais.

Houve momentos em que eu quis estapear cada um dos personagens brancos do livro. Mesmo aqueles mais sensíveis à segregação e ao racismo tinham maneiras de externar o preconceito. Jamie e Ronsel, por serem ambos veteranos e marcados pelas atividades em combate, acabam desenvolvendo uma amizade. Apenas eles entenderiam o que vinha acontecendo, por isso eles passam horas bebendo e falando de suas experiências. Mas em uma região marcada pelas ações da Ku Klux Klan, ninguém vê isso com bons olhos. Ronsel é impossibilitado de andar no banco da frente da caminhonete, não pode nem entrar numa loja pela porta da frente, pois os racistas estão à espreita.

Laura me pareceu por demais egoísta em diversos momentos, mas também bastante humana dentro daquele contexto. Humana no sentido de ter falhas, de ser uma personagem crível, vivendo numa situação que não queria. Henry, seu marido, é um oportunista, aquele tipo de homem que dobra as pessoas à vontade em uma superficial autoridade que lhe foi conferida apenas por ser branco e homem. Seu pai, Papi, é de longe o mais detestável, o mais nojento, o mais canalha, cretino, grosso, mau caráter e racista personagem do livro. E ainda assim deve só arranhar a superfície se compararmos com tantos homens reais que mataram e perseguiram negros na época e até mesmo hoje.

Chamavam a gente de 'os crioulos de Eleanor Roosevelt'. Diziam que sairíamos correndo assim que o combate começasse para valer. Diziam que não tínhamos disciplina suficiente para nos tornar bons soldados. Que não possuíamos miolos suficientes para pilotar um tanque de guerra. Que éramos, por natureza, inclinados a todo tipo de bandalheira: mentiras, roubo, estupro de mulheres brancas. Falavam que nossa visão noturna era melhor que a dos soldados brancos porque éramos geneticamente mais próximos dos bichos.

Página 40

É a amizade proibida de Jamie com Ronsel que causará a sucessão de tragédias da obra. É ela que levará a tantas traições e revelações de embrulhar o estômago. São dezenas de passagens justificando a forma como os brancos tratam os negros. Você quer parar de ler, você quer gritar, você quer que eles paguem por isso. Ainda não vi o filme, mas preciso me preparar para isso. E aí vemos que a diretor do filme tem razão: pouca coisa ou quase nada mudou. E somos coniventes com isso.

A edição da Arqueiro está bem revisada e diagramada. A capa traz os atores da adaptação para o cinema. Não encontrei erros de digitação ou de revisão. A autora conseguiu dar uma voz diferente para cada personagem. Você de fato percebe a mudança quando a narração muda e isso enriqueceu ainda mais a experiência.


Ficção e realidade
Esse é daqueles livros que, mesmo tendo um enredo ficcional, a época em que ele se passa nada tem de ficcional. O livro, bem como qualquer obra de ficção, por mais inspirada na vida real que ela seja, nunca contempla o real. O escritor pode tentar retratar a realidade, mas aquilo é um retrato, nunca a experiência real das pessoas.


Algumas pessoas justificam o racismo como sendo uma uma forma de darwinismo social, afirmando que a segregação era, de alguma forma, condizente com as leis da natureza, em que brancos seriam superiores aos negros. Era a tentativa de justificar o injustificável, algo que você lerá no livro com bastante frequência.

Nunca pensei que fosse sentir tanta saudade. Não da Alemanha nazista, porque só um louco sentiria falta de um lugar como aquele. A saudade era do homem que fui no período em que estive lá. Na Alemanha, eu era um libertador, um herói. No Mississippi, era apenas um preto empurrando um arado. E, quanto mais me demorava ali, mais me tornava somente isso.

Página 130

Pontos positivos
Bem escrito
Escrito por mulher
Retrato vívido de uma época
Pontos negativos

Violência
Racismo

Título: Mudbound – Lágrimas sobre o Mississippi
Título original: Mudbound
Autora: Hillary Jordan
Tradutor: Marcelo Mendes
Editora: Arqueiro
Ano: 2018
Páginas: 272
Onde comprar: Amazon


Avaliação do MS?
Mudbound já entrou para a lista de "livros essenciais, mas que são difíceis de digerir". Bastante premiada lá fora, Hillary criou uma história marcante, difícil de engolir e de justificar. Mas que ainda assim se mantém real e atual, pois o que mudou de lá para cá? A segregação racial e o racismo são ilegais, são crime e ainda assim as pessoas cometem o crime diariamente. Não é uma desconstrução fácil, assim como todas, mas necessária de se fazer. Quatro aliens para o livro e uma recomendação para você ler também.




Até mais!


Já que você chegou aqui...

Comentários

Form for Contact Page (Do not remove)