Connie Willis é uma das maiores escritoras de ficção científica e fantasia, multipremiada e que ganhou uma linda edição em português, pela Suma de Letras, do elogiado O Livro do Juízo Final. Ganhador dos três principais prêmios de FC & Fantasia (o Hugo, o Locus e o Nebula, um feito que poucos livros alcançaram) nós temos aqui uma jornada longa, perigosa, de uma historiadora dividida em dois tempos: o futuro e o passado.
O livro
No futuro, mais precisamente em 2054, viajar no tempo é um procedimento comum, usado por historiadores para conduzir pesquisa de maneira presencial. Imagine que você queira estudar a construção de algum prédio famoso, ou testemunhar um evento. A universidade tem esse poder. Mas você deve também retornar ao ponto de encontro na hora e data marcadas, ou será perdido no passado.Só que não é assim simples voltar para momentos cada vez mais distantes do passado, pois o desvio e os erros podem se acumular quanto mais longe você for. E há épocas muito perigosas, como a Idade Média. Mas quem disse que isso vai impedir Kivrin de viajar para 1320? Ela convence seu orientador, tem aulas de inglês médio e latim, aprende a fiar, a ordenhar, costurar, bordar. Aprender tudo aquilo não era um empecilho, era apenas um desafio para que ela atingisse seu objetivo. No dia do salto, com a história toda inventada e com tudo pronto, seu orientador, o Sr. Dunworthy, ainda não está confiante, em especial depois de problemas administrativos que apressaram o salto. Sua colega e médica, Mary, tenta acalmá-lo. Os dados foram computados, eles logo teriam o fix e tudo daria certo para Kivrin.
Mas é óbvio que as coisas dão errado com o técnico, Badri Chaudhuri, que cai doente e uma epidemia de uma misteriosa gripe começa. Será que Kivrin também teria sido exposta? Será que veio pelo fluxo do tempo? Todos os questionamentos, picuinhas, politicagem e paranoia começam por conta da epidemia que se espalha rapidamente. Bradi foi exposto ao vírus ou ele foi o vetor? Enquanto tentam rastrear todos os seus passos para descobrir a origem do vírus, a preocupação com Kivrin aumenta.
Lá no século XIV, assumindo o papel de donzela assaltada na estrada e agredida por ladrões, Kivrin logo cai doente. E acorda em uma casa senhorial, sendo cuidada por estranhos, sem entender uma palavra do idioma. Justo Kivrin, que se preparou tanto para a viagem, não conseguia compreender as palavras. Teria seu tradutor deixado de funcionar por causa da febre alta? E agora?? Kivrin junta as mãos, como se fosse orar, mas na verdade há um gravador implantado em um osso de seu pulso, onde ela registra a rotina da casa, as mulheres que cuidam dela, fatos da vida cotidiana que geralmente passam despercebidos e são completamente desconhecidos dos estudiosos.
Sabe aquele livro repleto de detalhes e de informações e personagens secundários? Se isso não for bem trabalhado, a obra vai ficar repleta de detalhes inúteis e você logo se cansa porque está lendo algo que não lhe interessa. Felizmente, não é o que acontece aqui, pois Connie Willis é uma contadora de histórias absolutamente perfeita. Nota-se a profunda pesquisa da autora em relatar a Idade Média, um futuro que não pareça inverossímil demais e pessoas com as quais você toparia ao virar uma esquina qualquer.
Com o avanço da epidemia e da paranoia, surgem aqueles para protestar na frente dos hospitais, farmácias, qualquer lugar. E é bem curioso notar que, em 1992, Connie tenha escrito um livro onde os ingleses pediriam que o país saísse da Comunidade Europeia, indignados com uma doença que muitos supõem ter sido trazida por imigrantes, por causa de Badri, que é indiano. Imagino a cara da Connie com o Brexit agora, não é mesmo? Connie tem um humor ácido e uma narrativa gostosa de acompanhar, tanto que você mal percebe que o livro seja tão grande.
Durante a Pandemia, fora o programa de guerra bacteriológica dos Estados Unidos e o ar-condicionado. Na Idade Média, puseram a culpa das epidemias em Satã e no aparecimento de cometas. Sem dúvida, quando fosse revelado que o vírus tinha origem na Carolina do Sul, diriam que a culpa era dos Confederados e do frango do KFC.
Página 289
Connie não dá uma informação para depois deixá-la de lado. Tudo o que você lê é extremamente pertinente, até mesmo o fato de Colin, o sobrinho-neto de Mary, chegar para o Natal e por ser curioso e intrometido. Cada pessoa mencionada terá uma função e Connie não tem dó de ninguém quando chega o momento, portanto prepara-se e não se apegue aos personagens. Os capítulos transitam entre 1320 e 2054, intercalados com as gravações de Kivrin do seu Livro do Juízo Final. Ela escolheu este nome para seus registros devido ao Domesday Book, de 1086, um grande levantamento requisitado por Guilherme, o Conquistador sobre a situação do país cuja coroa acabara de conquistar. É algo parecido com o nosso censo atual.
O livro vem em capa dura, com detalhes em amarelo. Bem diagramado, não encontrei grandes erros de revisão ou tradução. Só quero pontuar duas observações. A primeira, o fato de a autora usar Pssst, ao invés de Shiiiii, quando queria silenciar alguém. Às vezes fiquei com a impressão de ser o Didi Mocó. A segunda é com a tradução da palavra excited, que saiu excitada no português. O ideal era a tradução vir como agitada, ou qualquer palavra sinônima, porque uma criança de 5 anos excitada ficou bem esquisito.
Obra e realidade
Enquanto lia, fiquei pensando para que época eu gostaria de ir. O que gostaria de presenciar? É complicado pensar nisso, pois eu admiro o passado da história humana, mas não sei se gostaria de presenciar certas coisas. Pode parecer que não, mas estamos vivendo um dos séculos mais pacíficos da história humana, então fica aí um questionamento sobre como deviam ser os tempos passados, onde a morte era algo corriqueiro e presente na vida das pessoas, muito mais do que vemos hoje. Um livro que trata disso é Os Anjos Bons da Nossa Natureza e confesso que parei de ler quando ele começou a narrar alguns "divertimentos" da Idade Média envolvendo animais.No próprio livro há um questionamento sobre enviar uma mulher sozinha para a Idade Média, momento em que era impróprio até mesmo dirigir a palavra a um homem estando sozinha e quando crianças de 12 anos já estavam prometidas a casamento a homens quatro vezes mais velho. Somos frutos do nosso próprio tempo e por isso não sei se eu gostaria de presenciar as coisas que Kivrin viu. Isso por si só já nos faz pensar e refletir sobre uma série de escolhas, de maneiras de olhar para os lugares, para as pessoas, para os eventos.
Connie Willis |
Connie Willis é uma das mais prestigiadas e premiadas escritoras de ficção científica. Ganhou onze Prêmios Hugo e sete Prêmios Nebula, trabalhando com vários sub-gêneros de FC, com escritos esbaldando ironia e empatia.
PONTOS POSITIVOS
Viagem no tempo
Kivrin
Bem escrito e descrito
PONTOS NEGATIVOS
Pode ser lento em algumas partes
Viagem no tempo
Kivrin
Bem escrito e descrito
PONTOS NEGATIVOS
Pode ser lento em algumas partes
Avaliação do MS?
Espero de coração que os outros livros da série Oxford Time Travel cheguem ao Brasil. Quero mais viagens no tempo, quero mais jornadas como as de Kivrin, mais livros bem escritos e com tantas reflexões para a gente fazer. Não se assuste com o tamanhão dele, se jogue nessa leitura e acompanhe Kivrin, o Sr. Dunworthy, Colin, Mary, Lady Eliwyn e suas filhas Agnes e Rosemund através do tempo. Cinco aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também.Até mais!
Mais um para a lista, porém esse deixarei para um momento de calmaria na minha mente.
ResponderExcluirCapitã, no seu IG você publicou que está com The Wicked & The Divine. Por favor, faça review dessa HQ. É uma das minhas favoritas e gostaria muito da sua análise.
Acabei de ler e gostei muito. Os próximos livros seguem os mesmos personagens? Veremos Colin nas Cruzadas?
ResponderExcluirParabéns pela resenha.Como escreves bem!Gostei.Ia "pegar" este livro hoje.Não deu.Mas...irei.Parece show!!!
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