Não nos damos conta da quantidade de inovações médicas ao nosso redor que acabaram por salvar nossas vidas. As vacinas, os antibióticos, os remédios quimioterápicos. Na literatura médica fala-se muito sobre como as células HeLa foram vitais para todas as pesquisas que aumentaram nossa expectativa de vida e são usadas diariamente, pelo mundo inteiro, no combate a doenças. O que pouca gente sabe é o que HeLa quer dizer: Henrietta Lacks.
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O livro
Quando Rebecca Skloot estava na faculdade, ouviu falar das células HeLa pela primeira vez. Mas achou estranho que nem mesmo seus professores tivessem ciência da procedência destas células tão importantes para a comunidade científica. Elas estão em laboratórios do mundo inteiro e é até difícil de saber quantas delas estão vivas ainda hoje - uma estimativa diz 50 milhões de toneladas. Células em cultura dão respostas muito mais rápidas para cientistas que estão estudando câncer, vacinas, remédios, do que se usassem cobaias. A importância das HeLa é praticamente inestimável.Rebecca, por sua vez, não desistiu. Ela assumiu a missão de escrever um livro sobre a mulher esquecida pela ciência, cujas células ainda hoje estão vivas. Henrietta Lacks era negra, pobre, de pouco estudo, mas uma mulher determinada, divertida, amável e cheia de vida e amor pelos filhos. Em 1951, com apenas 30 anos de idade, seu marido a levou para um exame no Hospital Johns Hopkins. Ela sentia um caroço no cólon do útero e precisava ver um ginecologista. Fez tratamento com radioterapia, que era doloroso, mas em pouco tempo o tumor se espalhou e Henrietta precisou se internar, já que a dor não passava. Ela faleceu na madrugada de 4 de outubro de 1951.
O que nem ela, nem sua família sabiam é que as células recolhidas para biópsia começaram a se multiplicar no laboratório de George Gey, chefe de pesquisa de cultura de tecidos do Hospital Johns Hopkins. Ele vinha tentando todo tipo de cultura, mas as células morriam logo depois. Era uma febre e uma corrida na medicina da época de conseguir células vivas para pesquisa. Qual não foi sua surpresa quando aquele conjunto de células de biópsia passaram a se multiplicar em cultura. Elas não morriam. A assistente de Gey anotou as iniciais da paciente - HeLa - na cultura e o nome pegou.
Rebecca não sabia em que jornada estava entrando quando entrou em contato com a família de Henrietta. O impacto que aquelas células teve na família foi devastador. Deborah, filha de Henrietta, viveu no pavor de um dia morrer da mesma doença da mãe, aterrorizada com as notícias que lia sobre clones de células utilizando-se das culturas de HeLa na Inglaterra. Com razão, eles se sentiram usados pelo Hospital Johns Hopkins, que nunca informou que George Gey enviou as células HeLa para outros laboratórios, de tão empolgado ao ver que elas não morriam. Quando precisaram testar a segurança da vacina contra a poliomielite, de Jonas Salk, uma verdadeira fábrica foi criada para criar culturas suficientes.
Oprah é Deborah Lacks na produção do canal HBO, baseada no livro de Skloot |
Algo que me deixou bem irritada ao ler toda a jornada de Henrietta, sua família e suas células foi justamente o descaso da ciência com eles. Há todo um debate ético sobre a propriedade de tecidos e células depois que elas são retiradas do corpo. Várias decisões judiciais já deixaram claro que não é preciso haver consentimento para se armazenar tecidos e sangue. Mas isso não quer dizer que seja ético se valer de partes dos corpos dos pacientes em pesquisa médica, sem que eles saibam. Atualmente, se médicos quiserem coletar tecidos para pesquisa eles são obrigados a obter o consentimento, mas para o armazenamento não há obrigação nenhuma de pedir ao paciente. Pense em todos exames de sangue que você já fez, biópsias, extrações de tumores e dentes e pense em quantos lugares diferentes partes suas podem estar hoje?
É natural que as pessoas sintam uma grande sensação de propriedade sobre seus corpos. É nosso corpo afinal! E saber que alguém está ganhando dinheiro com suas células é algo que deixaria qualquer um muito irritado e aborrecido. Porém, isso não é um argumento legal válido. Quando seu sangue ou tumor é extraído, a questão legal fica bem nublada e ninguém sabe muito bem o que fazer com eles. A família Lacks se ressente de saber tudo o que as células de Henrietta fizeram e ainda fazem pela medicina, sendo que eles hoje não têm nem mesmo um plano de saúde. Médicos e pesquisadores usavam nomes complicados e terminologia médica quando queriam mais informações sobre a família, quando quiseram obter mais amostras de sangue e coube a Rebecca ajudar a família a entender e a ter contato, pela primeira vez, com as células da mãe.
O livro está completo. Rebecca também nos conta, em detalhes, de sua difícil jornada com os Lacks para poder obter sua confiança e assim conseguir detalhes sobre a vida de Henrietta. Deborah era paranoica com a documentação e o prontuário da mãe e demorou muito tempo para colaborar com o livro. Temos praticamente todos os envolvidos bem pesquisados e relacionados nas páginas, além de uma extensa bibliografia e um capítulo sobre a questão legal de tecidos.
Obra e realidade
Se a família de Henrietta ou se a própria, não fossem negros, pobres e de pouco estudo, a ciência se valeria de suas células assim, sem nenhuma preocupação em informar à família? A comunidade negra que frequentava o Johns Hopkins temiam experimentos médicos ilegais e com razão. A história sobre os experimentos de Tuskegee era bem difundida. Em Tuskegee, uma cidade do Alabama, durante 40 anos, 400 homens negros com sífilis ficaram sem tratamento para permitir estudar a “história natural” da doença. Senhores de escravos amedrontavam os negros para impedir fugas, alegando que eles seriam sequestrados para servirem de experimentos no próprio Hospital Johns Hopkins.Os nazistas fizeram experimentos durante a Segunda Guerra Mundial sem uso de anestésicos apenas pela "curiosidade científica", usando "pessoas inferiores". Ou seja, há um medo natural e com respaldo da própria história, de como a medicina e seus integrantes se valem do "valor científico" para muitas vezes cometer atrocidades. E o impacto que isso teve na família Lacks foi brutal. Hoje em dia, associações médicas e institutos já prestam o devido valor à história de Henrietta, mas sinto que ainda fica um gosto amargo para a família.
Pontos positivos
História realA vida de Henrietta
Abordagem científica
Pontos negativos
Descaso da ciência com Henrietta e sua família
Avaliação do MS?
Lamento ter demorado tanto tempo para conhecer esse livro. Não me lembro direito como que fui parar nele, acredito que devo ter lido em outro livro uma referência à ela e saí pesquisando o que pude, até que me deparei com o ebook. A leitura foi tão incrível, tão cheia de tapas na cara, que precisei adquirir o livro físico e ler de novo. Leitura mais que recomendada, é praticamente obrigatório ler este livro.Até mais!
Meu primeiro choque com as ciências foi aí pelos 25 anos.
ResponderExcluirAchava que as pesquisas científicas tinham que servir para melhorar a vida das pessoas.
Aí, descobri que o nazismo se valia do poder (absoluto) sobre grupos pessoas para usá-las em seus experimentos científicos, e que o tratamento cruel era justificado pelas descobertas científicas.
Hoje, penso que a ciência, assim como a política, não são boas nem más por si sós.
Seu uso e finalidade dependem do caráter do cientista ou político.
Depois de ouvir o Dragões de Garagem sobre ela eu corri pra conseguir o ebook. Estou lendo e as vezes preciso parar pra me recuperar (não lido bem com leituras médicas). A primeira vez que ouvi falar das culturas HeLa foi num vídeo do Pirulla, mas não quis me aprofundar, um livro essencial com certeza ^^
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