Resenha: The Book of the Unnamed Midwife, de Meg Elison

Eu fiquei sabendo desse livro depois que o John Scalzi falou muito bem dele no Twitter. Quando li a sinopse fiquei bem curiosa e intrigada com a história da enfermeira obstétrica sem nome que protagoniza a história. Acabei lendo o livro em um único dia, sem conseguir largar a personagem que nunca revela seu nome para as pessoas e que embarca em uma perigosa jornada.

Este é mais um livro do Desafio Literário 2017!

O livro
Uma estranha doença que causa uma febre alta e cansaço extremo acomete a raça humana. A febre é alta demais e súbita, as pessoas ardem como fornos elétricos de uma hora para outra. Uma enfermeira especializada em partos trabalha sem parar na maternidade, mas todos os partos resultam na morte dos bebês e na maioria das mães. Quem não morre no ato, morre pouco depois. O país vai afundando na epidemia, as pessoas se desesperam nos hospitais. Até que a enfermeira cai doente também.

Resenha: The Book of the Unnamed Midwife, de Meg Elison

Ela acorda no hospital, mas ele está vazio. As ruas também estão. Seu apartamento fechado há vários dias, está intocado. Sem entender o que está acontecendo, desaba na cama. Ao acordar, um homem está em cima dela. Na confusão do sono, ela pensa que é seu companheiro, mas o estranho a domina, tenta abrir suas pernas, sua meia ereção deixando-o mais e mais frustrado, até que ela consegue matar o estuprador e fugir do apartamento. Ao encontrar um café que costumava frequentar, ela cai no choro. De desespero, de cansaço, de não saber o que está acontecendo.

Ao encontrar um sobrevivente, ela percebe seu espanto. Ele diz que não existem mais mulheres por aí, praticamente todas morreram. A enfermeira decide parar de usar seu nome, começa a adotar vários ao longo da narrativa. Seu novo amigo e o namorado a convidam para andar com eles, enquanto buscam água e comida. Mas em um shopping, eles encontram um grupo que ao ver que eles estavam com uma mulher estão dispostos a tudo para ficar come ela. O trio é perseguido e então ela é expulsa pelo casal. A enfermeira está por sua conta.

Como você esconde uma árvore? Em uma floresta. É essa a lógica de sua radical mudança de visual. Ela sabia que sua integridade física e psicológica dependia do fato de não ser reconhecida enquanto mulher. Assim, ela encontra roupas masculinas, botas, comprime os seios para eles desaparecerem, raspa o cabelo e suja o rosto para parecer uma barba. Nossa enfermeira se torna um homem e constantemente luta contra os trejeitos femininos para não se entregar. Fale baixo, ombros retos, não morda o lábio, coloque um volume nas calças. São lembretes constantes, quase paranoicos, para que ninguém a descubra.

Munida de muita medicação, bebidas, cigarros e comida enlatada, ela começa a fazer negócios com grupos pequenos de homens que tenham alguma mulher. Em um dos casos, elas andam nuas e acorrentadas para não fugirem, como animais. Ela diz que quer fazer uma troca para passar meia hora com a mulher. Ao se ver sozinha com elas, a enfermeira se revela e oferece ajuda. Nem todas acreditam; em um caso ela precisou tirar a calça e colocar a mão da moça sobre a própria vulva para que soubesse que não estava em perigo. Ela oferece contraceptivo injetável que tem efeito por dois anos e nuvaring, para quando a proteção acabasse. Ela sabe que uma gravidez é mortal nesses dias e não pode deixar essas mulheres morrerem.

É muito angustiante acompanhar sua jornada. Porque enquanto o perigo para os homens era de morrer de fome, de sede ou de doenças, o maior medo das mulheres era o de ser estuprada. E a autora soube tratar do assunto sem demonstrar ou descrever uma cena sequer de estupro, o que prova que sim, dá para falar sobre o assunto sem detalhar as agressões e que dá para ter uma personagem forte sem recorrer a esse estereótipo. A enfermeira sabe lidar com armas, portanto sabe se defender e não hesita em matar quem lhe ameaça, mas a maioria das mulheres com quem ela cruza pela estrada não sabe e ficam à mercê de gangues.

Ninguém escolhe ser uma vítima, mas depois de uma vida inteira de prática, simplesmente acontece.

(tradução livre)

Em alguns momentos, como quando ela tira a roupa completamente, nossa enfermeira se sente deslocada dentro do próprio corpo. Tanto tempo apagando o próprio gênero por proteção a fez se sentir fora de si. O seios ficaram menores, pela magreza e pela compressão, seus cabelos têm corte de homem, e ainda assim ela luta para apagar tudo que diga que é uma mulher. Quantas vezes a gente teve que mudar de roupa por que sabia que não estaria segura em algum lugar? Essa é a extrapolação máxima desse sentimento.

Com frequência, ela pensa nas namoradas que teve na faculdade e no amor de sua vida, Jack, com quem morava. A incerteza acompanha sua vida a cada passo que dá. Ela conhece algumas outras mulheres pela estrada e a autora conseguiu dar a cada uma delas, mesmo que com tão pouca participação, uma identidade própria. São todas diferentes umas das outras. Algumas querem que ela lhe dê uma injeção para morrerem. Outras querem encontrar algum homem para protegê-las. A enfermeira só quer um lugar seguro para viver.

Me identifiquei com ela em vários momentos. São muitos os sentimentos trabalhados pela autora, sempre com intensidade. A questão de querer passar despercebida, a solidão, a falta que ela sente de sentar e conversar com as pessoas, o medo constante das pessoas. Tudo isso nós sabemos porque ela preencheu vários diários, contanto sua vida desde o momento em que acordou no hospital. Estes escritos ganharam um certo ar místico e são copiados por escribas como uma forma de lembrar do passado.

Li o ebook, não o livro físico, mas sinto muito mesmo que ele não tenha tido tradução para o português.

Sem nascimento, a vida é apenas essa espera.

(tradução livre)

Obra e realidade
As distopias extrapolam a realidade para que possamos enxergar algumas coisas. No caso da enfermeira, a autora extrapolou diversas situações cotidianas das mulheres para exaltar as desigualdades ou até situações que parecem típicas para muitas mulheres. O caso de ter um homem para protegê-las dos outros, algumas queriam se sentir protegidas, mas o custo muitas vezes eram a mutilação, abortos e morte no parto. A enfermeira nunca abriria mão de sua liberdade e integridade, ela sabia se defender sozinha.

Mas nem todas as mulheres sabem. Somos ensinadas a nunca tomar a iniciativa, a nunca ser muito agressiva, nunca ser muito ambiciosa, nunca ficar sozinha, nunca envelhecer. Quando uma situação extrema como aquela descrita do livro surge, muitas mulheres, por maior que seja o ativismo, por maior que seja a vontade de mudar as coisas, vão acabar se rendendo, vão procurar abrigo em algum homem que lhe ofereça um suporte. Quantas mulheres, para não ficarem sozinhas, se sentem obrigadas a casar e até a suportar relacionamentos que não estão dando certo? Esse livro aborda essas questões de uma maneira que dá para avaliar e perceber muita coisa na vida real.

Meg Elison

Meg Elison é uma escritora e ensaísta norte-americana.

Pontos positivos
Distopia
A enfermeira
Personagens fortes e bem descritas
Pontos negativos
Se alonga demais perto do final
Não tem tradução para o português

Título: The Book of the Unnamed Midwife
The Road to Nowhere Book 1
1. The Book of the Unnamed Midwife
2. The Book of Etta
3. The Book of Flora
Autora: Meg Elison
Editora: 47North
Páginas: 300
Ano de lançamento: 2014
Onde comprar: na Amazon!

Desafio literário protagonista não-hetero

Avaliação do MS?
Eu levei algum tempo para digerir o livro. Li em uma tacada só, até as duas da manhã e não conseguia parar de pensar nele nos dias seguintes. Carregado de significado e mensagens poderosas, é aquele livro feito para gerar discussões, para ser falado em rodas de leitura, para nos ensinar sobrevivência e resistência, para enaltecer as diferenças e nos fazer enxergá-las. Nem sempre é fácil perceber essas coisas. Cinco aliens para o livro, um pedido desesperado para alguma editora traduzir para o português e uma forte recomendação para você ler.


Até mais!

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Comentários

  1. Adorei a descrição, fiquei com vontade de ler tbm. Pena que ainda não tem em português!

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  2. Que incrível, Sybylla. Fiquei com a respiração presa enquanto lia a descrição após a enfermeira acordar e tudo o que se desenrola.
    Uma pena não ter em português ainda. Espero poder ler algum dia.

    Beijos,
    Maura

    ResponderExcluir

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