O pesadelo da Aia

A ficção científica é um grande "e se?". Imaginamos mundos, pessoas, enredos, mas em geral pegamos o agora, o presente e extrapolamos ao máximo para enaltecer problemas e/ou criticar algo. Quem acha que ficção científica tem que ser apolítica, no mínimo, tem algum problema de interpretação de texto. Pois os paralelos com a realidade são tão fortes, os universos podem ser transportados para o momento atual de tal maneira, que uma crônica sobre marcianos pode criticar a raça humana durante décadas.

O mesmo acontece com O Conto da Aia, de Margaret Atwood, um livro que acho muito difícil de digerir, mas cuja leitura recomendo fortemente para qualquer pessoa. Ainda estou digerindo a obra e precisava escrever sobre ela mais uma vez.




Para a resenha de O Conto da Aia, clique aqui.


Margaret Atwood, escritora canadense, costuma dizer que existem livros que amedrontam o leitor, outros que amedrontam o escritor, e outros que amedrontam os dois. E O Conto da Aia é um desses livros. Desde que foi publicado, em 1986, não ficou fora das prateleiras ou das editoras, pelo menos lá fora. Já virou filme, uma ópera, peça de teatro e tem suscitado questionamentos até hoje, inclusive tendo sido banido das escolas nos Estados Unidos.

O livro trata de uma república fundamentalista onde antes existiam os Estados Unidos. Nessa república, chamada de Gilead, as mulheres não podem trabalhar, nem ter dinheiro próprio e estão todas dividas em castas, uma de maior valor que a outra. As aias são mulheres em idade fértil que são mandadas para as casas de figurões do governo para que engravidem - já que as taxas de natalidade despencaram - e precisam passar por esse ritual de viés religioso na presença da esposa do comandante. Elas inclusive adotam o nome de Of + o nome do comandante. No caso da aia que narra sua vida ela é Offread, que era inclusive o título original.

Desde que o li que tenho dificuldades em digeri-lo. Este não é um livro fácil e vem repleto de críticas e situações que muitas mulheres vão logo compreender e, provavelmente, se sentirão muito mal, como eu me senti. O livro consegue essa proeza porque ainda estamos num mundo que julga mulheres pela roupa que vestem, pela a profissão que seguem, se vão ou não ter filhos. Estamos dividades em camadas, assim como no mundo da aia, onde algumas têm mais respeito que outras, desde que sigam as regras, criadas para uma ter inveja da outra, como inimigas.

Gilead tomou o poder nos Estados Unidos mantendo-se como uma república e não uma ditadura, ao menos no nome. Se ela se autodenominasse uma ditadura comunista, ou socialista, isso seria impopular. Dessa forma, ela se manteve como uma democracia, baseada na Bíblia - em especial no Velho Testamento - abolindo os direitos civis na falsa premissa de segurança e continuidade da nação. Em geral, os países não instauram nada que já não exista ou tenha existido antes, eles apenas mudam de nome quando na verdade poucas coisas mudaram.

Atwood pensou nisso ao escrever sobre a aia. Mas ela não se inspirou na época do esclarecimento e das luzes do século XVIII, um momento em que se falava sobre igualdade e da separação entre Igreja e Estado, mas sim na densa teocracia puritana do século XVII na Nova Inglaterra, marcada pela opressão sobre as mulheres, um momento que precisaria de apenas uma fagulha de desordem social para se restabelecer. A autora foi bem direta nesse ponto: ela não colocou nada em O Conto da Aia que já não existisse antes. Tudo ali veio de inspirações em fatos reais.

É assustador pensar na sociedade de Gilead, que mandou todas as mulheres embora de seus empregos, confiscando seu dinheiro, depois separando os casais que já tinham sido casados antes e utilizando mulheres como meras encubadoras para casais mais importantes. Mulheres estão sob constante supervisão umas das outras e dos guardas, não andam desacompanhadas, não são donas da própria vida. Se em 1986 o livro se mantinha atual e atingiu um público de forma tão incisiva a ponto de ser banido das escolas, hoje ele causa o mesmo efeito porque, em essência, nada mudou.

As opressões sofridas pelas aias e outras mulheres no livro ainda continuam no mundo real. Atwood as extrapolou para que pudéssemos enxergá-las, mas estão todas no nosso dia-a-dia. O controle reprodutivo sobre nossos corpos e escolhas, onde um projeto de lei pode dificultar o tratamento mais humano às vítimas de estupro. O controle sobre as pílulas do dia seguinte e anticoncepcionais. Nos Estados Unidos, empresas familiares podem se negar a pagar pelas pílulas anticoncepcionais das funcionárias se isso ferir sua religião.

Os enforcamentos públicos, as roupas específicas e regras de vestimenta para determinados grupos sociais, crianças roubadas por regimes ditatoriais, linchamentos públicos, controle reprodutivo e sobre os nascimentos, a proibição de acesso a livros e educação formal, revogação de direitos civis. Tudo isso é extremamente presente nos dias de hoje e não escapamos dessa violência à dignidade humana. O pesadelo da aia e sua vida regrada e sem escapatória é um reflexo de tudo o que existe aqui fora.

A aia é uma pária. Possuir uma é coisa somente para os poderosos do regime, assim como era possuir escravos. Elas são uma decoração, uma peça da sociedade que tem um trabalho a cumprir, fornecer bebês com os quais nem tem direito a ficar. Assim que sua função é cumprida, ela vai para outra casa. É mais uma reafirmação da crítica de que mulher não deve ter prazer, nem relações amorosas e sexuais. Quantos maridos largaram suas esposas por que queriam filhos e não tinham? Quantos namorados largaram suas companheiras por que elas engravidaram? A nossa sociedade e a de Gilead culpam igualmente a mulher por qualquer coisa que aconteça, inclusive violência.

The Handmaid's Tale

Controlar os corpos das mulheres é uma das formas mais eficazes de controle social. Subjugadas e impedidas de participarem da sociedade, sem direitos, elas também não têm voz. O Talibã ou o Estado Islâmico são bons exemplos de controle sobre as mulheres. Mas estes regimes são oportunistas, assim como qualquer outra grande ditadura ou teocracia. Enquanto eles mantém um ideal político que, na sua visão, é utópico, eles mantém um oportunismo secundário e ilegal, onde bens tidos como "mundanos" são largamento utilizados, bebidas alcoólicas e bordéis. Para o resto da sociedade, somente o controle.

Não precisamos do mundo do futuro da aia porque já o temos. O pesadelo vivido por ela, presa em amarras invisíveis onde nem direito à uma mínima vaidade dos tempos de antes lhe era permitida, quantas mulheres nos dias de hoje estão presas pelas mesmas amarras invisíveis da opressão, violência e controle? Vemos as notícias todos os dias de tentativas de controlar nosso ir e vir, relacionamentos, carreira, corpos, gestações. Livros como este servem de alerta, pois nem todo mundo consegue enxergar as amarras que estão em todas nós.

Até mais.



Leia mais:
Haunted by The Handmaid's Tale
Nalo Hopkinson on racial and gender diversity in science fiction literature
Rape and women's disempowerment



Comentários

  1. Eu não sabia que você tinha um Blog!! Mas fico feliz que a primeira postagem que encontrei trata desse livro, que conheci pelo Cabuloso Cast #164 e que estou doida para ler!! Amei cada palavra do seu texto. É importante pararmos para pensar e realmente acho que todas as pessoas deveriam ler esse livro.
    Parabéns pelo conteúdo!

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  2. Nossa, pela sinopse já dá para ver que é um livro forte.. Que ninguém vai ler e continuar pensando do mesmo jeito.
    Leituras como esta são necessárias, pois nosso mundo tem muito,muito o que evoluir ainda.
    Até mais!

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  3. geeeente,a Margareth é muito boa de narrativa! seu comentário me instigou muito a ler o livro (pena que ele está esgotado)
    e aaah...Qual o nome do filme que foi inspirado por esse livro???

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  4. Tenho esperança num futuro próximo (e com a ajuda da literatura) que o machismo deixe de existir...

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