Nós sempre estivemos aqui

Muitas discussões têm ocorrido entre meios nerds, de ficção, de games. Muito preconceito, muita misoginia descarada, racismo, homo/lesbo/transfobia acontecendo simplesmente porque as minorias querem o direito de curtir suas nerdices, seus gostos, sem serem violentamente rechaçados por descontentes. Descontentes estes que acreditam que o privilégio de curtir essas coisas é seu e de mais ninguém. Spoiler alert: não é.





Quando alguém alega que não há espaço na ficção científica, ou nos games, ou nos quadrinhos, ou nas nerdices em geral, para mulheres, negros, gays, lésbicas, trans*, pessoas com deficiência, esse alguém está esquecendo de um fato bem simples: nós sempre estivemos aqui. Curtir e consumir produtos, bonecos, quadrinhos, jogos, nunca foi privilégio de apenas um grupo como muita gente quer fazer crer. Se esse alguém não gosta de dividir os brinquedos, isso não nos fará desaparecer.

Se pegarmos apenas as estatísticas de leitores de quadrinhos, veremos que este tipo de argumento cai por terra. Em 1940, época em que os quadrinhos eram muito mais populares do que hoje em dia, quando os super-heróis surgiram, eles eram o entretenimento de massa. Em 1944, 95% dos meninos e 91% das meninas entre 6 e 11 anos liam quadrinhos. Na faixa etária de 12 a 17 anos, 87% dos meninos e 81% das meninas liam quadrinho. E entre 18 e 30 anos, 41% dos homens e 28% das mulheres eram leitores regulares de quadrinhos. Os quadrinhos tinham de tudo nessa época: romance, terror, comédia, ficção científica. E mesmo que hoje a diferença pareça maior, pesquisas como a de Janelle Asselin, de 2011, mostrou que 38% dos leitores são mulheres, 59% homens e 2% de não-binários.

Na ficção científica, mulheres sempre estiveram por lá. Escrevendo, editando, organizando eventos, publicando fanzines, dedicando tempo, dinheiro e criatividade para nem sempre serem reconhecidas por isso. É então que ficamos relegadas à marginalidade, como se nunca estivéssemos aqui. E estávamos aqui mesmo antes da revolução feminista da FC explicitada tão bem por Joanna Russ e Ursula K. LeGuin, nos anos 60 e 70. Gloria Steinem, ávida leitora de Mulher Maravilha, vem de uma geração de meninas que consumia quadrinhos e super heroínas e que lia contos em revistas de ficção científica.

Quando grupos majoritariamente masculinos alegam que não existem mulheres na FC, ou que não devam existir mulheres (ou qualquer minoria) e que nossa escrita é de menor valor, eles estão esquecendo de todas aquelas que tiveram que publicar sob pseudônimo masculino, como James Triptree Jr.; que tiveram que abreviar seus nomes, como C.L. Moore, conhecida como Catherine, The Great, cujos maiores fãs eram Robert E. Howard, autor de Conan e Robert Block, autor de Psicose; ou que nunca tiveram seus nomes mostrados, com trabalhos publicados anonimamente. Mary Shelley, autora de Frankenstein, só teve seu nome na capa do livro na terceira edição.

Nossa presença incomoda tanto, que a NBC achava que uma mulher não podia ser o segundo oficial de uma nave estelar, onde a audiência conseguiu tolerar melhor um alienígena de sangue verde e não uma mulher:

Quando começamos em 1964, eu era a Número Um, uma mulher como segunda em comando de uma nave estelar. Aquilo era inovador, mas é claro que a NBC fez um escândalo. 'Você tem que tirá-la daí. Ninguém vai acreditar que uma mulher pode controlar uma grande nave estelar', ele disse. 'Livre-se do cara com orelhas pontudas, ele parece diabólico'. A última coisa que o executivo disse foi 'você tem que ter mais homens do que mulheres, ou vai ter muita safadeza na nave'.

Majel Barrett Roddenberry

Majel Barrett em The Cage, episódio piloto original da série clássica de Star Trek

Quando mulheres são violentamente atacadas por possuírem blogs nerds, ameaçadas com morte, estupro, desejos de suicídio, com dados expostos na internet, quando somos silenciadas e brutalizadas por turbas furiosas de nerds, é sinal de que eles não nos querem por perto, de que nos odeiam. Formadores de opinião não se esforçam para mudar as linhas de seus editoriais, nem se importam com o que soltam para o público num mundo onde um boato no Facebook fez uma mulher ser espancada e morta porque acharam que ela era uma bruxa sequestradora de crianças.

Estamos criando uma política de silenciamento na internet, uma rede que deveria derrubar barreiras para promover inclusão, onde minorias não têm suas opiniões levadas em conta, onde uma simples resenha pode disparar comentários com todo tipo de impropério, onde sites e blogs são atacados. Estes comportamentos bizarros e carregados de pirraça não podem mais ser tolerados com tapinhas nas costas e com desculpas fajutas se isso não envolver mudanças de atitude e de pensamento. Misoginia, racismo, homo/lesbo/transfobia não são opinião. Silenciamento não é opinião. Nunca vou concordar com alguém que acha que pode fazer comentários preconceituosos coberto pelo manto da livre expressão, quando isso não é opinião. É apenas preconceito disfarçado de liberdade.

Nós sempre estivemos aqui. Criou-se no imaginário coletivo dos preconceituosos essa venda que omitiu nossa presença. Só que nós não vamos a lugar algum. E quanto mais gente curtir e gostar de FC, quadrinhos, games, e todo o tipo de nerdice na boa, compartilhando informações, trocando ideias, se divertindo, melhor ainda. Isso não é privilégio só seu.

Até mais!

Leia mais:
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Wiscon


Comentários

  1. Mesmo sabendo que esse depoimento(que não consegui selecionar ou copiar) do executivo da #NBC é do século passado, AINDA me toca porque eu consigo imaginar ordens semelhantes vindas dos chefões do entretenimento nos dias de hoje.
    Fico FELIZ de viver em um tempo em que O PUBLICO está conseguindo aos poucos mudar a visão da industria, sobre a questão da importância da #Representatividade :)

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  2. Ola! Estou fazendo um trabalho acadêmico e encontrei esse post seu...gostaria de saber de onde tirou esses dados das porcentagens pra eu poder citar no trabalho. Obrigada!

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    Respostas
    1. Todos os links usados estão listados no final do texto.

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