Quantas mulheres você leu?

Nem é uma pergunta difícil, certo? Mas para algumas pessoas é sim. Ler livros escritos por mulheres acaba sendo uma afronta a um mercado dominado por autores homens e brancos, heterossexuais, que contam e recontam seus dramas. Mas e as mulheres? Onde estão os livros delas? Por que elas são quase invisíveis?




Arte de Charlie Bowater. 

Muitas vezes a gente pode dizer que vive um Paradoxo de Tostines na literatura. Já vi gente dizendo que não lê livros escritos por mulheres porque sempre são livros com romance ou erotismo, como se isso fosse algo muito ruim. Ou então que livros para mulheres sempre são "sensíveis demais", outra coisa que também não é ruim.



Quem lê mais ficção científica que qualquer outro gênero também sofre em encontrar livros escritos por mulheres. No Brasil temos poucas e corajosas mulheres escrevendo no gênero, ainda que em editoras menores e de menor expressividade nas livrarias. Livros traduzidos também chegam, especialmente no ramo de young adult e juvenil. E só. Se o livro lá fora não ganhou algum mega prêmio de literatura dificilmente vai chegar por nossas terras. Ancillary Justice, de Anne Leckie, que foi anunciado pela editora Aleph, só ganhou tradução por ter ganhado o prêmio Hugo. Octavia Butler também ganhou e nunca ganhou tradução.

Vemos menos mulheres indicadas a prêmios de literatura, menos mulheres editoras, menos mulheres organizando e participando de eventos literários, sendo que compomos a maioria dos leitores de ficção. Mulheres acabam sendo sub-representadas nos enredos e também no mercado. Esse machismo passa como algo natural, como se a escrita da mulher fosse voltada para mulheres apenas, chick-list, enquanto o que é escrito pelos homens é "universal".

Há no meio editorial a ideia de que toda autora quer ser Clarice Lispector, oferecendo um tipo de pastiche clariceano odiado pelo público. Com um número tão inferior de mulheres publicadas, é natural que elas sejam menos contempladas nas premiações.

Luciana Villas-Boas, ex-diretora editorial da Record

Onde elas acabam crescendo: nos gêneros e sub-gêneros que o público "culto" e chato odeia, como a literatura juvenil, erótica e young adult. O filtro de publicações deixa de fora mulheres que não se enquadrem nestes círculos. Logicamente, não há nada errado em escrever nestes nichos, mas nós escrevemos em outros lugares e cenários que acabam desconhecidos. Quantas mulheres escritoras de space opera você conhece?

Tanto as personagens femininas quanto as autoras mulheres são mais criticadas do que livros de autores homens e personagens homens. Um exemplo é que a maioria dos protagonistas do John Green são extremamente parecidos, mas quase ninguém fala como se isso fosse algo negativo, enquanto vivem reclamando que todas as protagonistas de literatura YA são iguais como um modo de desvalorizar esse tipo de livro.

Dana Martins - Conversa Cult

Muitas mulheres, por anos, tiveram que ocultar seus gêneros para poderem ver seus livros publicados. Isso as tornaria mais sérias e deixaria seus livros nulos de gênero para não desagradar o público leitor. Frases como "você escreve como homem" também são bem comuns na vida da mulher que escreve. A escritora é constantemente alvo de críticas, obrigada a explicar o funcionamento de seu enredo, de não fazer uma personagem muito parecida com ela, enquanto homens escrevem para e sobre si mesmos, admitindo isso com muito orgulho.


Catherine Nichols submeteu seu manuscrito para 50 agentes literários e recebeu apenas duas propostas de publicação. Quando reenviou o material com um novo email e um novo nome, desta vez de homem, ela recebeu 17 propostas. E os próprios comentários melhoraram, em especial sobre o protagonista, sobre o enredo em si.

A pergunta que nomeia o post permanece: quantas mulheres você já leu? Quantas autoras negras você conhece e leu? Fui olhar meu volume de resenhas e vi que mulheres são minoria. E isso porque eu me esforço para sempre buscar obras escritas por elas, mas na ficção científica qualquer minoria vem sendo empurrada para a obscuridade por movimentos como os dos Sad e Rabid Puppies. Elas são menos publicadas e traduzidas por aqui e aí ficamos mesmo com a impressão que mulheres não leem nem escrevem FC.

A literatura escrita por mulheres é tão boa e tão significativa quanto aquela escrita por homens, mas é bem provável que as capas desses livros sejam capas "de menininhas", com moças magras e brancas em cenários vintage, com tons pastel, flores e laços. Maureen Johnson comentou no Twitter que gostaria de ver pedidos para capas femininas em que não houvesse esses estereótipos e chamou os seguidores para comporem capas alternativas para livros já conhecidos. Dois exemplos estão abaixo.

Capa original, esquerda, capa da direita se a autora fosse homem. 

Capa original, esquerda, capa da direita se o autor fosse mulher. 

Ler mulheres é uma afronta. Afronta a um mercado dominado por homens, seus livros, dramas e romances. E alguém pode até se questionar "mas você quer me obrigar a ler um livro escrito por mulher??". Eu quero que você pense porque isso parece tão absurdo e desconstrua o preconceito. E não quero que o #leiamaismulheres seja só um projeto bacana para postar foto no Instagram. Quero que você leia mulheres pensando que elas podem escrever coisas boas, que têm coisas pra contar e que encare a literatura como um espaço para todos, não apenas para um modelo. Ler mais mulheres não deveria ser um projeto, deveria ser algo corriqueiro.

Até mais.


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