O escritor que não experimentava

Por conta dos posts sobre diversidade, representatividade e prêmio Hugo costuma cair todo tipo de alucinado nos comentários do blog. Normalmente eu não respondo nem aprovo. Apenas dou um banimento básico no sujeito e pronto, a vida segue. Mas o comentário que recebi é tão sem propósito e tão problemático que vi que ele seria bem educativo para um post sobre a magnífica e misteriosa arte da escrita.

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Eu escrevo desde os 14 anos, quando comecei a ter aulas de redação no colégio. Eram duas aulas semanais, onde produzíamos conteúdo das mais diversas formas, descrição, narração, fazíamos revistas, HQ's e teatro. A ideia era sair do lugar comum. Era partir da fala simples e quase infantil e aumentar o nível de conhecimento tanto da forma narrativa quanto da gramática. Sou eternamente grata às aulas do professor Gustavo, porque sem elas não sei onde eu estaria hoje. Sério. Eu cresci e evolui enquanto ser humano por conta da escrita.

Participei de concursos de redação, fui ghost writer, organizei o Universo Desconstruído com outros escritores maravilhosos. Digo isso sem medo porque meus trabalhos anteriores e o trabalho do blog me levaram a conhecer e trabalhar com essas pessoas fenomenais. Pessoas de extrema importância para meu contínuo crescimento enquanto pessoa e enquanto escritora, quanto alguém que usa as palavras para se comunicar, criar mundos, personagens e expressar opiniões.


Infelizmente tem muito escritor com cabeça tacanha que esquece que a escrita é uma arte de experimentação, uma arte que nos faz sair do lugar comum e nos faz interpretar outras pessoas. Quando estamos em um livro, imersos na leitura, imersos naqueles personagens, podemos verdadeiramente sair da casca que nos cerca, casca essa de sociedade, de normas e de preconceitos, para poder viver em outras pessoas. Isso é fantástico, certo?

Bem... não para esse rapaz, que teceu este comentário (não vou publicar aqui o comentário completo):

Eu sou homem, sou branco, sou hetero e cis (termo idiota) e escrevo com base naquilo que sei, e seu texto basicamante propõe que eu escreva sobre ser gay?ser negro? ser mulher? é isso? eu não sei o que é ser essas coisas, mas sei que todos somos humanos e é sobre isso que eu escrevo, sobre o que é ser humano em situações incriveis e tento fazer disso algo de qualidade e é sobre isso que o premio deve tratar ficção cientifica de qualidade, e não bandeiras e babaquices que muitas vezes não podem nem ser retratadas como ficção cientifica!

Vamos começar pela incoerência deste trecho aqui:

seu texto basicamante propõe que eu escreva sobre ser gay?ser negro? ser mulher? é isso? eu não sei o que é ser essas coisas, mas sei que todos somos humanos e é sobre isso que eu escrevo, sobre o que é ser humano em situações incriveis e tento fazer disso algo de qualidade

Então, vejamos. Ele não sabe como é ser "essas coisas", que na verdade são seres humanos, mas ele alega saber que todos são humanos e que é basicamente sobre isso que ele escreve. Ele não escreve sobre essas "coisas", mas escreve para todos. Isso tem coerência? Se ele escreve para todos os seres humanos, mas diz não ter obrigação de escrever sobre mulheres, gays e negros, então ele está assumindo que escreve enredos para homens brancos cis e heteros, ou seja, ELE MESMO.

E foi exatamente isso o que eu disse no texto sobre a Ficção Científica ser um gênero dominado por aventuras de e para garotos brancos cis e heteros, que crescem e acham que sua única função na vida é escrever sobre e para si mesmos. Qualquer coisa que sinalize uma mudança na curva e no gosto dos leitores para uma maior inclusão e um grupo reaça de homens brancos cis heteros sequestram um prêmio do porte do Hugo e ainda ameaçam que destruirão o prêmio todo caso haja muitos casos de No Vote. O No Vote é quando nenhum livro indicado é votado.

Os escritores batem no peito na hora de dizer que eles escrevem sobre o que quiserem, que ninguém manda na escrita deles e ponto final. Vamos baixar um pouco a bola e olhar para o mundo que nos cerca. Tenho certeza que se um escritor assim quiser escrever nesse segmento ele terá público e visibilidade. Mas quem clama por diversidade só toma esporro. Se vocês não querem dedos estranhos em sua escrita, por que vêm se intrometer na nossa? E se alguém diz que não pode escrever sobre "essas coisas", então cadê sua empatia? Onde está sua capacidade criativa - afinal escritor deveria ser dotado de muita criatividade - para sair do pensamento estanque e experimentar?

Deixa eu escrever mais um livro sobre meus dramas.

Quando sento para escrever qualquer coisa eu faço pesquisa. Seja post, seja conto, seja livro, eu paro e pesquiso, junto fontes, guardo informações, faço resumos, pego livros e falo com as pessoas. Falar com as pessoas é o principal trunfo de um escritor. E se alguém se sente incapaz de escrever sobre outras pessoas que não seja si próprio, é sinal de que não é um bom escritor. Sinal de que aprendeu a sempre se achar o centro das atenções e que o mundo deve girar ao seu redor. Qualquer coisa que não o coloque no pedestal é agressivamente combatida.

Um escritor que se restringe a escrever apenas sobre o que sabe é alguém que não tem condições de sair da zona de conforto. Acaba perdendo o status de escritor e torna-se apenas alguém que coloca uma palavra na frente da outra. Se eu coloco um negro, uma mulher, um gay nos meus escritos é porque eu os considero seres humanos e penso fora da caixa o suficiente para tê-los como meus personagens. Utilizar-se de diversidade num enredo deveria ser um curso natural da escrita e não uma "babaquice", que é como muita gente, inclusive o comentarista acima, define isso.

Eu escrevo sobre o que me incomoda e sobre o que eu gostaria de ler. Escrevo sobre o que eu gostaria de poder mudar por minhas próprias mãos. Então se não posso fazer isso na realidade, a ficção é minha aliada nessa tarefa. E como disse Ursula K. Le Guin, as mudanças ocorrem primeiramente na arte, e muitas vezes, na nossa arte, a arte da escrita. Mulheres, negros, gays, trans*, travestis, não são COISAS, são SERES HUMANOS. Merecem respeito e a digna representatividade. O comentarista acima deve ter faltado nessa aula.


Até mais.

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