Eu evito muito, mas muito mesmo, tocar no assunto do astronauta no passado aqui no blog devido ao furor com que os fãs de Erich Von Däniken (que apelidei de daniketes) chegam aqui para me ofender. Até torceram para que, um dia, eu fosse "abduzida" por ser uma "descrente" sobre a "teoria" do alienígena ou astronauta no passado. Não existe teoria, existe pseudociência e racismo, só isso. Mas existem fatos em todo esse imbróglio que são difíceis de ignorar, como por exemplo a intrínseca relação entre astronauta no passado, supremacia branca e movimentos de ultra direita neonazista.
Arte de Gregory Manchess |
A ideia do astronauta no passado seduz muita gente leiga (ou às vezes apenas mau caráter) ao mostrar grandes obras da Antiguidade e colocar em dúvida a capacidade dos povos antigos de conclui-las na África, Oriente Médio, Ásia e na América Latina. Elas só podem ter recebido ajuda e provavelmente de alienígenas. Essa ideia não é apenas estapafúrdia, mas também racista, porque ela reduz o ser humano a um mero lacaio burro de alienígenas benevolentes e empilhadores de pedras, que "criaram" a humanidade e depois sumiram sem deixar vestígios críveis e legítimos.
Ou seja, toda a força do intelecto, do braço e da boa vontade da raça humana passam longe diante da magnificência dos alienígenas que tinham capacidade de viagem interestelar, mas precisavam de plataformas de pedras e desenhos no chão para poderem pousar. Enquanto isso, na Europa, os brancos construíam colossos e catedrais sem nenhuma ajuda. O astronauta no passado não é uma teoria, mas uma verdadeira seita e se você fala algo ao contrário, os ataques começam.
Quando você lê Eram os Deuses Astronautas? ele realmente impressiona por um breve momento, mas não se sustenta a uma análise mais acurada. Erich Von Daniken é apenas um escritor que abusa do sensacionalismo para tornar suas afirmações mais críveis. Não são poucas as afirmações dele que foram derrubadas pela arqueologia. E também não são poucos os processos que Däniken já sofreu, inclusive por falsidade ideológica e fraude. Daniken não responde a nenhuma pergunta, ele não consegue provar nenhuma hipótese. Ele mesmo já disse que é indiferente à verdade e que só escreve histórias fantasiosas para fazer dinheiro. E fez muito. Tanto que hoje acredita nas coisas que fala.
Seguindo o princípio de que o ser humano é um lacaio burro de aliens, fica assim bastante fácil dizer que povos como os antigos egípcios, ou os maias, incas e astecas, ou o povo do Zimbábue eram incapazes de construir suas magníficas civilizações. E pode reparar que estes povos têm algo em comum: não são brancos. Na verdade, falar de um Egito Antigo com reis e rainhas negros parece causar urticária em algumas pessoas. No entanto, nunca vi alguém dizer que o Coliseu, a Muralha de Adriano, ou o Partenon foram construídos por aliens.
Cleópatra, por exemplo, foi retratada no cinema sempre como branca, de porcelana, olhos azuis. Mesmo o ramo de Ptolomeu, a casa de Cleópatra, sendo macedônia, o próprio povo do mediterrâneo não é porcelanado de olho azul e já existem dados indicando que parte de sua descendência vem da África. Toda a realeza egípcia, inclusive das dinastias mais antigas, é ainda retratada como branca, porque parece um absurdo admitir que uma das maiores civilizações do planeta, que já era considerada antiga pelos próprios gregos, tidos como os "fundadores" da civilização, pudesse ser negra. Quem quiser se aprofundar nisso, procure pelo escritos de Cheikh Anta Diop. Em geral, os negros ficam relegados aos papéis secundários nas produções de cinema. No filme Êxodo, de Ridley Scott, é bem fácil notar que os servos e guardas são negros, enquanto a realeza é toda composta por atores brancos, inclusive o próprio Ramsés.
O mito de Moundbuilder e as origens dos "antigos astronautas"
Engana-se quem pensa que essa história é nova. Por muito tempo, nos Estados Unidos, acreditou-se no mito de Moundbuilder. Os euroamericanos acreditavam que as estruturas pré-históricas encontradas nas novas terras teriam sido construídas por uma raça caucasiana anterior à chegada dos povos nativos que foi exterminada posteriormente por seus descendentes. O espanhol Hernando de Soto encontrou alguns dos construtores originais desses montes de terra (Moundbuilders) quando visitou as tripos ao longo do rio Mississippi entre 1539–1546.Mas os ingleses, assim que viram tais estruturas sofisticadas, teorizaram que um povo caucasiano vindo de Israel teria ocupado o novo mundo, deixando suas estruturas para trás e que os povos indígenas que os europeus encontraram conforme seguiam para o interior, já devastados por doenças e pelo avanço do homem branco, seriam incapazes de construir as estruturas de várias formas geométricas e efígies de animais que encontravam. E isso serviu de motivo para o extermínio dos povos nativos e para alimentar a ideia de um "genocídio branco" anterior à chegada dos europeus às Américas, elemento que hoje é combustível para a supremacia branca e para os neonazistas.
O Grande Monte da Serpente, em Ohio, construído pelo povo Adena, entre 800 AEC e 400 EC. Tem pouco mais de 400 metros de comprimento e representa uma serpente segurando um ovo na boca. |
Os colonizadores começaram a admirar as construções quando a ideia de que construtores brancos tinham construído os montes, mas desprezavam as construções caso alguém dissesse que tinham sido os povos nativos. Ainda na década de 1870, porém, dois estudiosos, Cyrus Thomas (1825–1910), do Smithsonian e Frederick Ward Putnam (1839–1915), do Museu Peabody concluíram categoricamente de que não havia nenhuma diferença entre os esqueletos sepultados nos montes dos esqueletos dos povos nativos. Mas por mais que a ciência provasse, o mito dos construtores brancos permaneceu até meados dos anao 1950. E somente o DNA pareceu sepultar de vez a ideia.
O mito do branco construtor benevolente também foi levantado na África. Quando o explorador alemão Karl Gottlieb Mauch chegou às ruínas da imensa fortaleza do que se convencionou chamar de Grande Zimbábue em 1871, ele logo disse que a construção era na verdade uma réplica do palácio da Rainha de Sabá, em Jerusalém. Mesmo com a população local apontando que a construção era de povos africanos antigos, ele se recusou a reconhecer que tal fortaleza bem construída e complexa, rodeada por minas de ouro no meio da floresta fosse uma obra de povos subsaarianos.
Essas ideias foram amplamente divulgadas na Europa, em um contexto de imperialismo e colonialismo que começaram a se misturar com a cultura popular, principalmente histórias voltadas a visitantes de outros planetas ou seres místicos superiores. A ficção científica tem grande responsabilidade neste tipo de conteúdo que acabou apropriado por pseudo historiadores. A coisa cresceu mesmo no contexto da Segunda Guerra Mundial, com histórias de avistamentos e a busca por uma raça ariana superior pelos nazistas.
A ideia do astronauta no passado como a conhecemos hoje surge na década de 1960, com os escritores franceses Jacques Bergier e Louis Pauwels e seu livro Le Matin des Magiciens (O Alvorecer dos Magos), uma mistura mal organizada e confusa de todos os tipos de teorias bizarras, esotéricas e “ocultas” sobre todos os tipos de assuntos diferentes com uma semelhança incrível com os trabalhos de HP Lovecraft. Este livro, inclusive, é o responsável pelo mito de que os nazistas eram obcecados pelo ocultismo e que dispunham de equipes vasculhando o mundo atrás delas, bem no estilo de Indiana Jones e a Arca Perdida.
Em 1963, o escritor francês Robert Charroux publicou One Hundred Thousand Years of Man’s Unknown History (Cem Mil Anos de História Desconhecida do Homem), onde ele propõe a ideia de uma supremacia racial dos celtas, acreditando existir uma ilha entre a Islândia e a Groelândia de pessoas racialmente superiores, loiras, de olhos azuis que teriam dominado a Terra eras antes. #afff
Bergier, Pauwels e Charroux moldaram a ideia, mas não a popularizaram. Isso aconteceu após a publicação de Carruagem dos Deuses? Mistérios do passado não resolvidos, de Erich von Däniken, que não passa de uma cópia do trabalhos dos três autores anteriores. Vale lembrar que Daniken já foi examinado por um psiquiatra forense a mando de um tribunal e ele foi categorizado como um mentiroso patológico, além de ser um conhecido golpista que ganhou milhares de dólares enganando hotéis.
Muitas editoras rejeitaram o manuscrito de Daniken por vários motivos: escrita ruim, teorias estapafúrdias e por aí vai. Mas uma editora alemã chamada Econ-Verlag, porém, se interessou pelo trabalho. Ela publicaria o livro com uma condição: que ele fosse reescrito. A editora então contratou Wilhelm “Utz” Utermann, ex-editor do Völkischer Beobachter, o periódico oficial do Partido Nazista. Utermann reescreveu boa parte do livro, removendo partes em que Daniken dizia que Jesus era um alienígena. Porém reforçou as partes em que Daniken alega que as grandiosas obras de povos não brancos foram erguidas por aliens.
O livro foi um sucesso escandaloso, vendendo mais de setenta milhões de cópias, tornando-se a obra fundamental para a sedimentação da ideia dos astronautas antigos.
Povos nativos de barba?
Um dos exemplos mais escandalosos de tentar rebaixar povos do passado ou de retratá-los como brancos é sobre o mito do deus Viracocha. Nas aulas de história das Américas, no ensino médio, eu aprendi que os incas receberam os espanhóis muito bem, pois eles pareciam com seu deus Viracocha, brancos e de barba. Cronistas espanhóis do século XVI disseram que Francisco Pizzaro foi bem recebido pelos nativos devido à sua pele clara e barbada, que lembrava a descrição do seu principal deus. Pedro Cieza de León, em 1553 foi o primeiro a relatar isso e mais tarde Pedro Sarmiento de Gamboa fez o mesmo. Histórias semelhantes de outros cronistas descrevem Viracocha como um deus branco, barbado. Os relatos dos próprios povos nativos não fazem menção alguma à descrição de seus deuses como semelhantes aos conquistadores.Situação semelhante aconteceu com os astecas e com seu deus Quetzalcoatl e diversas outras divindades das Américas Central e do Sul. Por muito tempo se sustentou a ideia de que a barba representava um papel central na mitologia destes povos, pois os ligaria à pré-história europeia, de onde teriam partido os primeiros habitantes das Américas, que posteriormente ficaram conhecidos como seus deuses. Povos nativos das Américas, em geral, não têm barba, mas a cultura Moche, no Peru, e sua famosa cerâmica é toda retratada com barba, isso bem antes da chegada dos espanhóis. E quando os padres Silvestre Vélez de Escalante e Francisco Atanasio Domínguez entraram em contato com a cultura Paiute, ambos relataram que:
Alguns homens tinham barbas finas e pensamos que eles se pareciam mais com espanhóis do que com nativos americanos.
Cerâmica Moche, mostrando homens barbados. |
Como se isso não bastasse, voltemos ao caso de Daniken, onde ele "disserta" sobre as origens "raciais" do ser humano em seu livro Signs of the Gods. A tradução eu fiz livremente, pois não encontrei o livro em português.
Os evolucionistas dizem que o homem descende dos macacos. Mas quem já viu um macaco branco? Ou um macaco negro com cabelo enrolado como a raça negra tem?
Eram os extraterrestres hábeis em optar por diferentes raças desde o começo? Eles teriam dotado diferentes grupos humanos com diferentes habilidades para sobreviverem em diferentes condições climáticas e geográficas?
Hoje assume-se que os homens primitivos tinham pele escura.
Teria sido a raça negra uma falha e os extraterrestres mudado o código genético por cirurgias genéticas e, então, programado uma raça branca ou amarela?
Quase todos os negros são musicais: eles têm ritmo em seu sangue.
Entendo que estou brincando com fogo ao questionar se os extraterrestres atribuíram funções específicas desde o começo, ou seja, os programaram com habilidades especiais.
Eu não sou racista... Mas minha sede pelo conhecimento me permite ignorar o tabu ao fazer questões raciais simplesmente por ser inoportuna e perigosa... por que somos como somos?
Uma vez que a a pergunta foi feita, não podemos nem devemos evitar sua explosiva consequência: existe uma raça escolhida?
Hernan Cortes e a conquista do México. |
Já ouvi de muitas pessoas que eu devia ser mais "mente aberta" para a ideia do astronauta no passado, pois é perfeitamente "plausível" que os aliens tenham vindo para cá e auxiliaram o ser humano a construir a civilização. Para a ficção científica é sim muito plausível, Stargate taí que não me deixa mentir. No entanto, sinceramente, acreditar que somente alguns povos da antiguidade eram capazes de construir monumentos impressionantes, enquanto outros - especialmente europeus - não são acusados de conspiração com aliens em suas construções é um exemplo de racismo científico e preconceito contra os povos nativos. Eu também ouvi na escola que os indígenas eram, "naturalmente", preguiçosos e vagabundos e no filme Dança com Lobos acontece um diálogo igual enquanto o personagem de Kevin Costner vai para seu posto na fronteira.
Este tipo de mito é danoso e ainda é o responsável pelos preconceitos que existem na sociedade para todos aqueles que não são caucasianos. Por várias vezes durante a história, pseudocientistas tentaram rebaixar as populações não-europeias com base em características físicas e/ou sociais. Para alguém que afirma que a raça negra foi um "erro", é um passo para afirmar que os aliens tiveram que dar uma forcinha para construir as pirâmides.
O próprio Carl Sagan teceu alguns comentários sobre Daniken, nem um pouco elogiosos.
Aquela forma tão descuidada de escrever como a de von Däniken, cuja principal tese é de que os nossos antepassados eram marionetes, e o fato de ser tão popular é um reflexo sobre a credulidade e desespero dos nossos tempos. E a ideia que seres de qualquer outro lado viriam salvar-nos de nós próprios é uma doutrina muito perigosa - semelhante ao do médico charlatão cujos tratamentos impedem que o cliente procure um médico competente para o ajudar e, quem sabe, talvez curar a doença.
Carl Sagan, no prefácio de The Space Gods Revealed
O desespero dos nossos tempo também tem uma explicação. Darwin nos tirou de "sua imagem e semelhança" com Deus e Copérnico tirou a Terra do centro do universo. Se nossos deuses e religiões deixam de responder às questões mais fundamentais da civilização - de onde viemos, qual nossa posição no universo - a melhor saída para isso é procurar respostas em outro lugar. E os alienígenas visitando a Terra, alterando o código genético, selecionando raças para serem dominantes e auxiliando aquelas que não eram tão hábeis se encaixa como uma luva.
A ideia do antigo astronauta ajuda a reforçar as mesmas suposições racistas que a geraram. Os colonizadores europeus têm historicamente procurado retratar os povos não-brancos sem a capacidade intelectual necessária para construir uma "civilização", muitas vezes alegando que essas pessoas não construíram monumentos impressionantes, ainda que as evidências arqueológicas existam. Essa ideia também planta dúvidas injustificadas nas mentes das pessoas sobre a construção de monumentos fora da Europa, o que pode tornar mais difícil para os os povos não-brancos combater as narrativas da supremacia branca.
Até mais!
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Belo texto, me surpreendeu voce falar que sofre agressoes de fãs do Daniken, não achei que isso existiria, mas de fato tem maluco pra tudo.
ResponderExcluirQuanto a ideia de Deuses Astronautas, eu nunca tinha pensado por esse lado racista dessa visão, onde torna o homem branco capaz de suas construções mas o restante não. Esta ai mais um motivo para eu não gostar das obras de Daniken.
E o Daniken escorregou no famoso argumento "não sou racista, mas...".
Os que as pessoas que defendem a ideia dos astronautas não percebem é que estão complicando ainda mais. Mesmo que tenha alguma mega construção antiga que não saibamos como de fato foi feita. Se considerarmos que foi obra humana, basta encontrar como foi feita. Agora se considerarmos que foi obra de alienigenas, teremos que: Mostar que eles existem, mostrar que conseguem vir pra cá, e ainda mostrar como foi que construiram.
Mas no final os aliens se tornam um deus das lacunas, e por isso digo que essa crença na verdade são nossos mitos modernos.
Por fim, parabéns pelo texto.
Texto de 2014 e eu ainda não conhecia... com certeza um de seus escritos mais inspirados. E sobre esses que não param de criticar e atacar, um antepassado seu já disse como se portar: Arik tree-ac te kek! (hehehe)
ResponderExcluirParabéns!!!!!!
ResponderExcluirPerfeito! 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
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