Mulher e literatura

Desde que ouvi o We Can Cast It sobre o preconceito e o desprezo para com as mulheres na literatura, que venho pensando sobre o assunto. E também já vinha pensando nisso desde que li o texto da Giza Souza, falando sobre como a literatura escrita por mulheres ou para mulheres acabou virando um subgênero. Não existe literatura feminina, existe apenas literatura.



Mulher e literatura

Como mulher e leitora (e tentando, aos trancos e barrancos, escrever) estou insatisfeita com muita coisa no mercado. Primeiro, o modo como os livros "tidos para mulheres" são tratados, em especial nas livrarias. Trabalhei na livraria da Fnac por 2 anos e quando montávamos os painéis com obras indicadas no espaço feminino iam livros de auto-ajuda, dieta, romances e de receitas. Volta e meia entrava um livro de poemas selecionados. Eu já achava errado ter um painel feminino, pois não existia um painel masculino. A coisa piora consideravelmente na escolha das obras, que reforçavam estereótipos a cada montagem. Os livros de romance sempre retratavam mulher-que-se-apaixona, ou então homem-que-passa-por-uma-revolução-com-a-morte-da-amada. Ou seja, parece que mulher não lê fantasia, nem ficção científica, nem nada. E o mercado ainda vende esse modelo.

Segunda coisa que emputece: se você escreve uma personagem feminina, precisa justificar essa infeliz de alguma maneira. Não importa o que ela faça, nem quem é, se você é mulher e escreve, precisa justificar as ações da sua personagem. Eu não vejo homens justificando porque o seu personagem masculino usa um guarda-chuva vermelho. Mas uma personagem feminina, com certeza, usa um guarda-chuva vermelho para se proteger do mundo machista e assim poder manter sua individualidade, seus segredos e mistérios, longe do ataque do mundo externo. Não é porque você simplesmente a colocou com um guarda-chuva vermelho, você TEM alguma coisa para justificar. Ou seja, passaram para a literatura o fato de uma mulher precisar sempre se provar como indivíduo pensante e de ação. Caso o contrário, você é só um receptáculo, uma coisa vazia que está lá para auxiliar o herói.

o foda de ser escritora mulher (além do fato de ter que especificar o gênero nesse texto pra se fazer compreender) é, entre outras coisas, precisar o tempo todo se policiar para que uma personagem feminina não fique demais parecida com você, porque aí as pessoas todas vão achar que é um alter-ego, caçando neuroses e apontando dedos, como convém a essas pessoas que tão bem intencionadamente leem livros como quem assiste à novela.

Olivia Maia

Não apenas justificar sua personagem, você se vê alvo de críticas para explicar TUDO. Quando o Universo Desconstruído saiu encontrei uma crítica violenta, agressiva mesmo, ao fato de eu ter dito, em Codinome Electra, que as naves se moviam por salto estelar. O cara estava me cobrando para explicar o mecanismo de salto e invalidou tudo o que eu disse no restante do conto. Ele desdenhou com uma agressiva ironia, dizendo que era imperdoável não haver uma explicação plausível e que era provável que eu tivesse enfiado o termo ali sem nada entender de transporte interestelar. Não me lembro de alguém cobrar a mesma explicação de Asimov sobre como as naves em Fundação se moviam...

O escritor homem brasileiro baseia seus personagens em um modelo: branco, classe média, divorciado, sozinho, angustiado. Ele vive, em geral, numa grande cidade brasileira (AKA Rio de Janeiro ou São Paulo) e sua vida é destrinchada nas páginas de um livro, suas desavenças, seus amores e vendido, muitas vezes bem vendido, nas grandes livrarias. Ponto para o autor. Mas e as autoras?

(...) a literatura feita pelas mulheres é considerada plural, dá vozes a quem não teria antes. (...) Muitas dessas mulheres – que, vale ressaltar, nem sempre produzem personagens femininas – fazem literatura pela instabilidade, com personagens sem base, sem marcas fixas (...) assim como elas, seus personagens precisam lutar para conseguir alguma coisa.

Karol Vieira

Mulher Maravilha

No entanto, onde estão as autoras? Onde estão as brasileiras que escrevem e quebram barreiras, que representam outras mulheres e homens de forma verossímil, onde elas estão, cadê? Pois é, se você tem dificuldade de ver ou ouvir sobre elas é porque a atenção permanece sobre os autores homens. Veja por exemplo o Nerdcast que falou sobre literatura fantástica brasileira. Ninguém ali sequer cogitou a hipótese de chamar uma mulher. Os autores eram velhos conhecidos como Raphael Draccon, André Vianco e companhia. O pensamento automático foi para os autores homens. E pode apostar, eles não têm que justificar seus personagens. Eles não têm que se blindar de críticas por escrever algo.

quando um homem produz algo com temática romântica, ninguém questiona a qualidade, ninguém diminui. todos ficam maravilhados com a sensibilidade do artista. quando é feito por uma mulher, é, bom, "coisa de mulherzinha". meio ridículo, não?

Clara Averbuck

As autoras femininas estão aí diariamente produzindo conteúdo seja em blogs ou sites, e batalhando para serem lidas e ouvidas por editoras. Não é de estranhar que muitas delas saiam por editoras pequenas cuja representatividade nas estantes é menor do que uma grande empresa que pode pagar pelo espaço frontal da vitrine. Muitas vezes é impressão sob demanda, do bolso mesmo. A própria mídia pouco aborda livros escritos por mulheres. Você lembra quando foi o último comercial sobre um livro que viu? E o último livro escrito por uma brasileira que você leu, qual foi? E uma brasileira negra? Você ouve falar de alguma na grande mídia?

Na lista dos Dez livros mais vendidos da Veja, só há uma mulher, e não é brasileira. E quatros destes livros são de John Green. Na lista de não-ficção, a coisa melhora um pouquinho, com quatro mulheres na lista. Mas não no primeiro lugar. E não é apenas no Brasil que mulheres penam para publicar seus livros ou sofrem preconceito. Lá fora, o cenário não é muito diferente, mesmo que o mercado literário seja bem maior que o brasileiro.

O escritor Mark Lawrence, autor de Prince of Thorns, fez uma pesquisa com seus leitores depois de notar que muitas autoras precisavam mudar seus nomes para não transparecer seu gênero, em especial no ramo de fantasia e até precisavam pôr mais romance em seus livros. E então, ele perguntou aos leitores se eles ainda comprariam Prince of Thorns se fosse uma Mary Lawrence escrevendo. Cerca de 20% dos leitores disseram que não comprariam. Mark só pode supor que isso é um círculo vicioso envolvendo leitores, editoras, livrarias e mídia e é algo difícil de quebrar.


Autores homens não são questionados sobre como eles trabalharam as temáticas masculinas em suas obras. Eles podem sofrer pressão a respeito do estado da arte ou sobre quando virá a continuação do livro, mas como disse Margaret Atwood:

Escritores homens podem sofrer pressão sobre sua dedicação sincera à sua arte por razões de classe, raça ou nacionalidade, mas até agora nenhum escritor é susceptível de ser convidado a sentar-se em um painel para abordar os problemas especiais de um escritor homem, ou esperar que apoie outro escritor, simplesmente porque ele calhou de ser homem. Essas coisas são ditas às mulheres que escrevem o tempo todo, e isso irrita.

Não é preciso deixar de ser mulher para escrever. Virginia Woolf disse uma vez que "é fatal para qualquer um que escreve em pensar em seu sexo". Só que nós não queremos que nossos nomes nos descaracterizem. Não queremos nomes abreviados na capa para não denotar gênero e assim parecer mais vendável. Mas o mercado e os leitores precisam mudar e deixar o preconceito de lado. Editoras precisam sair do ostracismo e buscar o material que nossas mulheres escrevem, pois nós temos muito a dizer. E tem muitas de nós querendo ler.

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Comentários

  1. Deve ser por conta de preconceitos como este que a vencedora do prêmio Hugo para Melhor Fã Escritor em 2015 tenha começado a escrever com o pseudônimo de M. J. Locke/Morgan Locke, só para citar um caso recente.

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