Os conflitos urbanos relacionados ao acesso à moradia digna não são de hoje. São recorrentes as imagens na televisão, mostrando pessoas perdendo suas casas em reintegrações de posse, por estarem em terrenos invadidos. Vemos a ação da Polícia Militar, obedecendo às decisões da justiça, vemos um verdadeiro caos nas grandes cidades. O que está acontecendo? Por que o ato de morar em uma cidade grande, como São Paulo, tem levado a tantos conflitos?
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Moradia é um direito básico, certo? Tanto que ela consta da nossa Constituição:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
E o Artigo 23 diz:
É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;
Ou seja, todo cidadão brasileiro tem este direito garantido na Constituição de 1988, mas sabemos que, na prática, isso não funciona. É importante mostrar a perspectiva da lei porque tem muita gente que acha que moradia não é um direito. É sim, taí. O que vemos nos jornais e pela internet é que as pessoas não têm acesso à moradia digna nos bairros já consolidados, sobrando as franjas periféricas que também já não têm mais para onde expandir. Pegando apenas São Paulo como exemplo, já que eu moro aqui e estudei a questão da habitação na cidade, os dados do IBGE de 2000 indicavam que existiam mais imóveis vazios do que famílias sem casa para morar - 254 mil imóveis contra 203.400 famílias. Se alguém chiar que estes dados são antigos, o censo de 2010 diz que o déficit continua.
Bairros inteiros foram erguidos por autoconstruções, que é quando o próprio morador, com a ajuda da família e dos amigos, constrói sua moradia no tempo de folga ou nas férias, fazendo empréstimos e comprando terrenos no mercado imobiliário informal. Muitas vezes, são terrenos invadidos que, ao longo do tempo, foram urbanizados e legalizados. Elas ocuparam o espaço deixado pelo Estado pela falta de investimentos em habitação social já desde o governo militar e vários governos estaduais incentivam esse tipo de edificação, com cortes em impostos e prazos maiores de financiamento na compra de material de construção.
Nos primórdios da industrialização, a questão da moradia para os trabalhadores era resolvida com a construção das vilas operárias, cujas casas eram alugadas ou vendidas aos trabalhadores, o que permitia certas despesas por parte dos operários e os salários ficaram rebaixados. Com o crescimento industrial, o número de trabalhadores aumentou rápida e consideravelmente. A aceleração dos fluxos migratórios criou um excedente de mão de obra e tornou desnecessária a fixação do trabalhador junto da empresa. Tal crescimento acabou por pressionar a oferta de habitação popular. Dessa maneira, as empresas transferiam para o trabalhador o custo da moradia e do transporte e os custos dos serviços urbanos básicos para o Estado. Moradia passaria então a ser tratada pelas relações econômicas no mercado imobiliário e deixa de ser uma questão estatal.
O que levou a população de baixa renda de São Paulo a adotar a autoconstrução foi à falha do governo em fornecer habitação em valores acessíveis a todos os extratos da sociedade. Como tentativa de sanar o problema de alocação destes moradores, durante o governo militar, sob o presidente Castello Branco, surgiu o Banco Nacional de Habitação (BNH) que não atuou para sanar as necessidades das populações de baixa renda (até três salários mínimos na época), ao contrário, seus beneficiários foram classe média e média alta que tinham maior renda e cartas de crédito mais acessíveis.
Com a descentralização ocorrida no governo civil do país a partir de 1985, estados e municípios ganharam maior autonomia em quase toda sua administração. No ano seguinte, em 1986, o BNH seria extinto, e as verbas do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) passaram a ser geridas pela Caixa Econômica Federal (CEF), que se tornou o carro-chefe da habitação no país. Somente o estado de São Paulo, por meio da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) e da Secretaria de Habitação mantém cerca de 40 programas oficiais de habitação.
A descentralização também fez com que o assunto habitação pulasse de pasta em pasta por entre os ministérios desde 1985, pela ordem: Ministério do Interior, do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, da Habitação, Urbanismo e Meio Ambiente, Habitação e Bem Estar Social, do Interior mais uma vez, da Ação Social, do Bem Estar Social de novo, do Planejamento, e finalmente, em 2003, na pasta da Secretaria Nacional da Habitação no Ministério das Cidades.
A extinção do BNH, no entanto, não serviu para sanar os problemas habitacionais. A Caixa Econômica Federal, por ser um banco nos moldes tradicionais, precisa dar um retorno de todos os seus investimentos, nem que seja em longo prazo, que não pode ultrapassar 30 anos. Ao usar os recursos do FGTS para um programa habitacional, a Caixa Econômica precisa cobrar juros ao dono do dinheiro, ou seja, o trabalhador, o que na época do BNH tinha subsídio parcial do governo federal. Se o governo destinasse verbas do orçamento da União aos programas da Caixa Econômica, a opção pelo uso do FGTS seria apenas uma entre as de financiamento.
Entretanto, a participação da União nestes programas raramente passa dos 12% para as famílias que ganham até três salários mínimos, e que compõem o grosso do déficit habitacional no país, cerca de 83%. Ou seja, se a Caixa Econômica faz um empréstimo ou fornece crédito, isso é um adiantamento sobre renda futura, supondo que o mutuário terá renda para pagar. Outra forma seria o empréstimo a custo zero, o mesmo que redistribuir renda.
Além disso, o mercado imobiliário só pode negociar imóveis que estejam legalizados:
Não se trata apenas de remeter para a ilegalidade parte da população que não tem acesso ao mercado formal. Há uma correlação entre lei (urbanística) e mercado imobiliário capitalista. O financiamento se aplica somente aos imóveis legais. A dificuldade no financiamento de imóveis populares, em todo o Brasil (caso da carta de créditos da Caixa Econômica Federal, em meados dos anos 90), deve-se à ilegalidade generalizada desses imóveis cuja documentação não corresponde às exigências do banco. Há, portanto uma correlação entre financiamento e imóvel legal que termina por excluir grande parte da população do acesso a empréstimos destinados à aquisição ou construção de moradia.
Hermínia Maricato
É muito comum os haters da internet vociferarem que essas pessoas são vagabundas, que querem tudo na mão, que a gente tem que trabalhar, estudar e consegue tudo o que quer, num passe de mágica. Eu, trabalhando, com curso superior, também não tenho acesso à moradia. Moro de aluguel até hoje porque nunca tive renda suficiente para fazer financiamentos, nem consigo participar de programas habitacionais do próprio governo do estado de São Paulo, para quem trabalho. É falta mesmo de condições de estudo e trabalho? Ou é um problema estrutural muito mais profundo?
O mal estar habitacional que vemos hoje nas metrópoles é um resultado deste histórico de não-inclusão de trabalhadores no mercado imobiliário e pelo fato de os salários não contemplarem os custos de habitação. Vemos muitas famílias reclamando que o aluguel social fornecido pela prefeitura não é suficiente para que eles paguem um lugar decente para morar. E muitos não possuem renda para complementar este aluguel. E com o encarecimento das metrópoles, ficará cada vez mais difícil para que essas pessoas permaneçam em seus limites. Elas vão morar cada vez mais longe, em novas periferias, dependendo de um sistema de transporte que não consegue ser mais rápido. A metrópole hoje é uma área para poucos e explorada por poucos. E não vejo melhoras.
Até mais.