A misteriosa arte da leitura

Ler é tudo de bom. É até possível acreditar que é um elemento fundamental de qualquer sociedade moderna, esclarecida e livre. Podemos até pensar nisso como o elemento fundamental de uma civilização. Há muito tempo que ela serve de padrão para identificar o surgimento de virtudes contemporâneas como democracia, secularismo, ciência e tolerância com a disseminação da alfabetização que ocorreu após a (re)invenção da imprensa por Johannes Gutenberg no século XV.

A misteriosa arte da leitura

Também acreditamos que a capacidade de ler e compreender textos é essencial para formar um cidadão do mundo, moderno e participativo. Uma pessoa incapaz de ler está desconectada da sociedade, isolada de conhecimentos que podem lhe ser benéficos. Mesmo no mundo da internet, tão dominada por vídeos e áudios, é impossível participar dessa rede sem a habilidade de ler.
Mas é interessante notar que a leitura não é natural. Ela não vem imbutida no cérebro de todas as pessoas. Nós precisamos ser alfabetizados e precisamos praticar a leitura constantemente. Nenhuma criatura não humana jamais aprendeu a ler como fazemos. Segundo o psicólogo Edmund Burke Huey, em 1908, a leitura:

(...) tornou-se a atividade artificial mais impressionante e importante já criada pela raça humana.

Por não ser natural, Huey se perguntava quais seriam as condições e funcionamentos incomuns que são impostos ao organismo durante a leitura? O que acontece com olhos, mente, cérebro e nervos, quando lemos? Por mais simples que pareçam, essas questões são fundamentais e ao mesmo tempo muito difíceis de responder. Elas exigem não apenas conceitos psicológicos e fisiológicos sofisticados, mas posturas sobre questões como a relação mente-corpo e a natureza do próprio conhecimento.

Se no passado, a leitura era considerada “uma das artes mais misteriosas”, a partir de 1870, gerações de cientistas começaram a se debruçar sobre os mistérios envolvidos no ato de ler e tentaram responder às perguntas de Huey. É preciso apontar que Huey escrevia e pensava sobre uma era onde a educação de massa e a expansão da democracia geraram um grande contingente de letrados, inclusive mulheres, antes excluídas do processo. Então tais perguntas abundavam entre os educadores, psicólogos e pedagogos.

Ler também é uma competência da linguagem. O que lemos e como isso nos afeta pode refletir nossa personalidade e nossas experiências como indivíduos. A história dos leitores e da leitura pode oferecer muitos insights sobre a natureza e a história da sociedade como um todo.

Os primeiros textos escritos foram feitos para serem lidos em voz alta. Os caracteres eram escritos em um fluxo contínuo, para serem desembaraçados pelo leitor habilidoso ao ler em voz alta. A pontuação foi usada pela primeira vez apenas por volta de 200 aC e era errática até a Idade Média. As massas ainda eram analfabetas e o material escrito só chegava a elas por meio de leituras públicas. As leituras públicas aconteciam nas cortes reais e nos mosteiros. As performances de malabaristas e contadores de histórias estavam em voga nos séculos XI e XII EC. A leitura de um livro era considerada um entretenimento agradável na hora do jantar, mesmo em casas mais humildes, desde a época romana até o século XIX.

Autores populares abraçaram essa tradição, desde as leituras cuidadosamente planejadas de Charles Dickens até as monotonias desinteressadas de outros. Para alguns autores, como Jean Jacques Rousseau, cujas obras haviam sido proibidas pelas autoridades francesas pré-revolucionárias, as leituras na casa de amigos eram a única forma de conseguir público.

Mesmo quando a educação se tornou mais difundida, ser lido era uma importante via de entretenimento e aquisição de conhecimento, especialmente para as mulheres. Bem no século XIX, as mulheres foram encorajadas a adquirir apenas uma educação mínima, e suas ambições acadêmicas foram desaprovadas. Ser lido por familiares e amigos era aceitável e fornecia às mulheres uma espécie de válvula de escape para sua curiosidade e fome de histórias. Uma vez que o ensino primário se tornou mais acessível e aceitável, os mais novos passaram a ler para os mais velhos, numa doce inversão dos clássicos contos da vovó.

Garota lendo com canecá de café na mão
Já que os primeiros textos foram feitos para serem ouvidos em vez de vistos, o ato de ler em silêncio era uma curiosidade. Em 330 aC, quando Alexandre, o Grande, leu silenciosamente uma carta de sua mãe na frente de suas tropas, os homens já impressionados ficaram ainda mais surpresos com as capacidades sobrenaturais de seu general. Bem mais tarde, em suas Confissões, escritas no século IV EC, Santo Agostinho se maravilha como seu mentor, Santo Ambrósio, que conseguiu compreender o significado de um texto enquanto “sua voz estava silenciosa e sua língua imóvel”.

Os primeiros regulamentos exigindo que os estudiosos trabalhassem em silêncio nas bibliotecas monásticas datam do século IX. As bibliotecas antigas e medievais até então, e provavelmente por um tempo considerável depois disso, teriam sido muito diferentes do conceito moderno de um lugar tranquilo para estudar. Da próxima vez que você sonhar acordado em ler na biblioteca de Alexandria ou na Biblioteca de Celso, em Éfeso, não esqueça de levar em consideração o ruído das explorações acadêmicas que acontecem seu redor.

Com maior alfabetização, melhores regras de pontuação e livros que se tornaram acessíveis ao público em geral pela inclusão de imagens ou simplificação da linguagem, a leitura silenciosa tornou-se a norma. Cada vez mais leitores começaram a estabelecer uma conexão pessoal com o texto escrito, sem que a voz e a interpretação de outra pessoa atuassem como intermediários. A leitura silenciosa tornou a leitura uma atividade privada – abrindo espaço para mais opções na escolha do recanto de leitura. Chaucer recomendava a leitura na cama no século XIV, Omar Khyyam e Mary Shelley defendiam a leitura ao ar livre, enquanto Henry Miller e Marcel Proust preferiam a solidão absoluta do banheiro.

Seja onde for que você leia, espero que suas leituras sejam edificantes, que mudem sua forma de pensar para o bem, que te eduquem, que te divirtam. Leia sempre!

Até mais!

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