Direito à morte digna

Dias atrás os jornais anunciaram a morte do Dr. Morte (não é pleonasmo). O doutor Jack Kevorkian era partidário da chamada "máquina da morte", que auxiliava pacientes em estado terminal a cometer suicídio. Assim como outros assuntos, este não é isento de polêmica. Quem pode decidir quando e como terminar com uma vida? Nós temos esse direito? O governo deve debater sobre o assunto?




Como o assunto é visto aqui no Brasil? Não é. A discussão praticamente não existe, seja nas escolas, faculdades de medicina ou nas esferas de poder. A morte é um assunto não muito discutido nos círculos familiares e de amigos pelo simples fato de que ninguém quer morrer. No entanto, muita gente pode ignorar o fato de que existem pessoas morrendo na extrema agonia, enquanto médicos e familiares tentam medidas impossíveis de evitar o inevitável. E saúde é algo caro, a ponto de levar famílias à falência. Estou falando da eutanásia? Se o sentido que você está dando à palavra é dar um fim digno à uma vida, sim. No entanto, muitas pessoas pensam que o procedimento é imoral, que não se deve discutir, igual ao aborto, onde consideram um aglomerado de células um ser humano completo.

Em 1997, nos Estados Unidos, universidades fizeram uma ampla pesquisa em diversos hospitais do país e os dados que conseguiram foram alarmantes:

  • 40% das pessoas morrem sentindo dores insuportáveis;
  • 80% enfrentam fadiga extrema;
  • 63% passam por grande sofrimento físico e psíquico ao deixar a vida.

A morte tem sido uma experiência dramática e dolorosa na maioria dos casos e o preconceito com relação ao tema apenas agrava a situação, ainda mais em um país como o Brasil onde a saúde está doente há muito tempo. Um dos motivos para isso muitas vezes é relacionado ao próprio ambiente médico. Olhando exclusivamente pelo viés capitalista, morrer custa caro. Um dia de internação em um hospital vale algo em torno dos 3 mil reais, seis vezes mais se o paciente necessitar de tratamento intensivo (UTI). Existem casos onde as famílias decretam falência, em especial nos Estados Unidos onde não existe serviço público de saúde, para custear as longas contas hospitalares. Dados de hospitais como o Hospital do Câncer e o Hospital das Clínicas de São Paulo indicam que nos últimos seis meses de vida um paciente já gastou com saúde mais do que gastou a vida inteira e o resultado é sempre a morte dolorosa.


Mas como as pessoas simplesmente vão à falência? Porque muitas vezes médicos e familiares tentam tratamentos que não vão resolver, prolongando a vida e as dores dos pacientes. Parece não haver um limite claro de quando interromper um tratamento que não está funcionando afim de garantir uma qualidade de vida em seu final. A discussão sobre uso de recursos na área da saúde é tão polêmica, que na Inglaterra o governo decidiu não mais pagar hemodiálise para pacientes acima de 65 anos. Eles entendem que podem usar os recursos - pois lá existe saúde pública - em outras áreas que carecem de atenção. É uma atitude dramática? Com certeza, mas isso só mostra que governos não dispõem de recursos infinitos e que podem quebrar, ainda mais com crises mundiais balançando grandes nações. E os britânicos sabem que muita gente vai morrer com essa medida, mas acreditam que aplicando esse orçamento em campanhas como antifumo, por exemplo, serão capazes de salvar mais gente. Números, apenas frios números.

Então, afinal, estou defendendo que devemos entrar nos hospitais e desligar os equipamentos dos doentes para economizar dinheiro no final do mês? Não. Estou sugerindo a humanização da morte. Tratar a pessoa em seu final de vida com respeito, não prolongando situações terminais apenas para satisfazer o desejo do médico de dever cumprido ou da família de não querer aceitar o inevitável. A maioria dos médicos prolonga a vida dos pacientes o máximo possível, mesmo que isso traga mais sofrimento. Se um paciente em estado terminal acabar desenvolvendo uma infecção pelo tempo acamado, a família deve pedir para que ela seja tratada ou apenas garantir seu conforto nas etapas finais? Esse conforto é a humanização, é tratar o doente de maneira digna, encarando o fim de cabeça erguida.


A sociedade moderna não aceita a dor e a agonia. E também não aceita dignidade na hora da morte, como se a dor fosse tornar um paciente em estado terminal uma pessoa melhor e isso fosse obrigatório. A Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que todos nós temos direito à vida e que ela é inalienável. E o Artigo 1º da Constituição Brasileira de 1988 garante dignidade à pessoa humana. Mas vida sem qualidade ainda é vida? Temos o direito de negar procedimentos mesmo que isso signifique a morte e se um paciente deseja morrer sem dor, livre de tubos, máquinas e remédios, ele deve ser informado deste direito. Em 1999, uma lei sancionada pelo então governador do estado de São Paulo, Mario Covas, estabelece o direito de um doente de recusar o prolongamento da agonia e de escolher onde vai morrer, se em casa ao lado da família ou em um hospital. Até a religião tem uma opinião sobre isso. Em 1957, o papa Pio XII afirmou:

(...) "quando houver desesperança, os médicos não devem se valer de instrumentos extraordinários para prolongar indefinidamente a vida".

Minha mãe e meus amigos sabem que se chegar um momento em que tratamentos não resolvam, não quero que medidas extraordinárias sejam tomadas para salvar minha vida. É uma decisão que tomei e que acho válida. Não estou dizendo que quero morrer hoje, ou amanhã, mas um dos fatos inegáveis da vida é que a morte chega a todos. E prefiro encará-la de frente do que tentando tratamentos que prolongarão minha dor. Se as pessoas sempre ouvem que é necessário nos preparar para a vida, temos que ter consciência de também é necessário se preparar para a morte e para partir da melhor maneira possível: cercado de pessoas que nos amam, sem dor e com dignidade.

LEIA MAIS 

O direito de Morrer - Superinteressante/Março 2001
Uma nova morte - Superinteressante/Dezembro 2005
Canal de Bioética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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