Obra fundadora da literatura finlandesa e um épico nacional, a Kalevala é um retrato do interior rural da Finlândia e de suas superstições e mitos. Compilada pelo médico e filólogo finlandês Elias Lönnrot, ele percorreu as vastas extensões geladas da Lapônia, da Carélia Russa, da Península de Kola e dos países Bálticos, ouvindo cantos antigos e contos que as famílias contavam ao redor das fogueiras para criar uma obra que deu uma identidade a todo um povo.
O livro
Em sua forma original, a Kalevala é um longo poema, com 50 cantos (mas na primeira versão eram somente 32). O poema descreve as façanhas de vários heróis míticos finlandeses, mas principalmente: Väinämöinen, o bardo, Ilmarinen, o ferreiro, Lemminkäinen, um misto de Ulisses e Don Juan finlandês, e de Kullervo, um tipo de anti-herói de destino trágico. O termo Kalevala se refere ao lugar onde a epopeia se passa.
A guerra é uma doce doença, em especial para jovens rapazes com muito a ganhar e pouco a perder.
Com uma ótima introdução, que nos apresenta o livro e sua influência ao longo do tempo, a editora explica sobre a tradução e a forma como é apresentada. Por ser muito longo e conter cantos extensos, a tradução optou por narrar parte da história como um livro normal, inserindo cantos dos personagens em determinadas passagens, principalmente nos embates entre eles. A ideia é atrair o público leigo, sem restringir a obra a leitores acadêmicos e estudiosos. Dessa forma, a leitura corre sem tropeços e é muito agradável de acompanhar.
O protagonista mais importante do Kalevala é o velho e sábio menestrel Väinämöinen. Ele combina as características de um herói lendário, um xamã e uma divindade mítica. Outras figuras centrais são o ferreiro Ilmarinen e o mulherengo combativo Lemminkäinen. Um tema predominante do épico é a relação entre Kalevala (a terra de Kaleva) e Pohjola (a terra do Norte, por vezes conotada com a Lapônia).
Alguns dos temas da Kalevala apresentam paralelos com mitos de outras culturas. Por exemplo, Kullervo lembra o mito grego de Édipo. A história de Lemminkäinen, resgatado do rio da morte por sua mãe, apresenta fortes paralelos com o mito egípcio de Osíris. A Kalevala difere de outros ciclos mitológicos por seu foco nas pessoas comuns. Os heróis da Kalevala se distinguem menos por suas proezas marciais e mais por seu conhecimento e habilidades de canto.

Sejas bem-vindo, meu irmão Väinämöinen
Ancestral e valoros mago!
Por que esteves ausente por tanto tempo?
Onde estavas te escondendo?
Kalevala foi uma das grandes inspirações de Tolkien para criar sua mitologia e seus personagens da saga O Senhor dos Anéis. É possível ver na figura de Väinämöinen, por exemplo, dois grandes personagens da saga do Um Anel: Gandalf e Tom Bombadil. A influência da obra é tão grande, que Tolkien usou a estrutura e a fonologia do finlandês para criar a língua élfica Quenya. Na introdução desta edição, inclusive, há uma ótima discussão sobre a influência do poema nas obras de Tolkien.
Assim como em O Senhor dos Anéis, a Kalevala gira em torno de um artefato mágico de grande poder, o Sampo, que concede imensa fortuna a quem o possui, embora sua natureza exata jamais seja esclarecida durante a leitura. A figura do sampo teria ainda inspirado as joias mágicas, as Silmarils, que são um elemento central de seu legendário. E assim como o Um Anel, o Sampo também é disputado pelas forças do bem e do mal e acaba perdido no mundo.
A tradição da poesia popular transmitida oralmente pode ser encontrada em toda a região do Báltico, ou seja, na Finlândia, Carélia, Estônia e Íngria e acredita-se que ela tenha surgido há cerca de 3 mil anos. Chamadas de runos ou runas, elas eram cantadas muitas vezes acompanhadas do kantele, um instrumento tradicional de cordas. As runas eram muito comuns na região até o século XVI, mas após a Reforma, a Igreja Luterana proibiu as runas pagãs. É possível notar em algumas partes da Kalevala de Lönnrot a influência cristã, mas fiquei pensando na variedade de canções que foram perdidas ao longo do tempo.
Os personagens desse poema não são soldados: são agricultores, caçadores, pescadores, ferreiros. Vivem num mundo cheio de mistérios, mas seu dia a dia gira em torno do gado, dos peixes dos rios, do perigo representado por lobos e ursos nos arredores das vilas, e de festas rituais como nascimentos e casamentos. Apesar dos elementos sobrenaturais, é um épico surpreendentemente pé no chão.
Väinämöinen, o principal personagem do poema, também parte em uma jornada como tantos heróis de épicos famosos. Mas, ao contrário deles, não está atrás de uma espada mágica ou de algum objeto de poder, o que ele busca são palavras: feitiços antigos, histórias perdidas no tempo. Ele é frequentemente descrito com epítetos como “o cantor” e “o sábio eterno”, bem diferente dos guerreiros de Homero, como Heitor, “matador de homens”, ou Menelau, “famoso pela lança”. Aliás, em uma das poucas vezes em que dois heróis resolvem sair para a guerra, tudo o que conseguem é se perder em alguma floresta da Lapônia. No fim, desistem e voltam para casa, com direito a uma boa sauna para se recuperar depois da jornada.
A edição está lindamente ilustrada e bem traduzida por Carolina Alves Magaldi, que também adaptou o texto para uma narrativa mais amigável do público. Essas são canções antigas e tradicionais, então há elementos de violência, incesto e machismo em muitas partes, mas é inegável que as mulheres também têm protagonismo. As canções tratam de amores perdidos, coragem, busca por glórias e joias míticas, embates entre canções, disputas territoriais e drama, muito drama.
Obra e realidade
Quando Elias Lönnrot nasceu, em 1802, a Finlândia era uma província da Suécia; quando ele veio a compilar o Kalevala, nas décadas de 1830 e 1840, já fazia parte do Império Russo. A identidade finlandesa era e vinha sendo desde o século XII, pouco mais que uma ideia compartilhada por alguns e às vezes perigosa. Assim, esse épico faz parte de uma onda de nacionalismo literário e linguístico do século XIX que também nos legou curiosidades como o Pan Tadeusz, na Polônia, ou A Coroa da Montanha, na Sérvia-Montenegro, ainda que, neste caso, lidando menos com a história do que com uma pré-história mítica.Diferente de Beofulf, a Kalevala é um produto de Lönnrot, onde personagens foram fundidos, e lendas foram habilidosamente organizadas em uma estrutura que busca contar uma história composta do passado mágico da Finlândia. O que difere a Kalevala de outros poemas e históricas épicas são seus heróis, que não são intrépidos guerreiros, são cantores e xamãs, e quando se enfrentam, em vez de empunharem armas, eles começam a cantar. Tipo o Tom Bombadil, de Tolkien.

Elias Lönnrot (1802 – 1884) foi um médico finlandês, filólogo e colecionador de poesia oral tradicional finlandesa. É mais conhecido por criar o épico nacional finlandês, Kalevala, (1835, ampliado em 1849).
O título é derivado de Kaleva, o nome do antepassado do célebre herói, e significa algo como "a terra de Kaleva". O texto padrão do Kalevala consiste em 22.795 versos, apresentados em 50 cantos. Em 2023, o Kalevala, como um épico vivo, ganhou o Selo do Patrimônio Cultural Europeu.
PONTOS POSITIVOS
Väinämöinen
Poesia épica
Trabalho gráfico
PONTOS NEGATIVOS
Acaba rápido!
Väinämöinen
Poesia épica
Trabalho gráfico
PONTOS NEGATIVOS
Acaba rápido!
Avaliação do MS?
Comecei a ler sem saber exatamente o que esperar, achando que a linguagem talvez me repelisse. Mas estava enganada! Devorei a Kalevala, grata por ter partido em jornada com heróis míticos pelas terras ermas da Finlândia, lamentando não ter lido esse livro antes. Se você curte livros épicos, com heróis fortes, então se joga nesse aqui. Quatro aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também!
Até mais! ❄️
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