Resenha: Julia, de Sandra Newman

Uma das distopias mais famosas da literatura, 1984, de George Orwell, publicado em 1949, tem influenciado a cultura e a sociedade desde seu lançamento. Considerada uma leitura obrigatória, o livro pode ser entendido de diversas maneiras, o romance examina o papel da verdade e dos fatos nas sociedades e as formas como eles podem ser manipulados. E há uma personagem deste livro que até então não tinha voz. Mas Sandra Newman nos trouxe a história de Julia, amante de Winston Smith, o protagonista de 1984.

O livro
Londres é a principal cidade da Pista de Pouso Um, a terceira província mais populosa da Oceania. O ano é 1984, e Julia Worthing trabalha como mecânica no Departamento de Ficção do Ministério da Verdade. Sob a massacrante ideologia do Partido INGSOC e seu onipresente líder, o Grande Irmão, Julia parece ser uma cidadã-modelo, ostentando sua faixa da Liga Antissexo pelos corredores, participando de eventos e do Dia do Ódio. Mas Julia também quebra as regras com frequência, faz contrabando e tenta sobreviver em um mundo complexo e repressor.

Resenha: Julia, de Sandra Newman

Ela transava, embora isso pudesse matá-la, portanto era natural gemer "Eu te amo" na orelha de um homem que ela com certeza nunca mais veria. Ela o amava porque era proibido. Ela o amava para se despir do medo.

Uma coisa que me incomodou muito em 1984, além de ser um livro extremamente amargo, é que Julia não tem nenhuma personalidade. Na verdade, Julia parece uma boba apaixonada por um dos sujeitos mais desinteressantes que a literatura já produziu. A obra de Orwell não trabalha muito bem as personalidades dos personagens, eles são uma caricatura, assim como o regime da Oceania e sua paródia de totalitarismo, além das implicações intelectuais do totalitarismo.

Isso também incomodava Sandra Newman e com a autorização do espólio de George Orwell, Newman escreveu um grande livro e deu a Julia toda a personalidade que ela carecia no livro original. Winston Smith aparece, mas de maneira pontual e até cômica, pois Julia não tem papas na língua na hora de descrever suas relações sexuais, suas decepções, a maneira cômica como Winston falhou na primeira vez com ela e como ela gostava de transar ao ar livre.

A autora seguiu muito de perto todos os eventos de 1984, indo além e dando uma finalização para a personagem que soa mais feliz do que a de Winston Smith, ainda que poucas coisas mudem politicamente. Newman respeitou a linguagem e a cultura do romance de Orwell, nos levando por uma paisagem bem familiar para quem leu 1984, mas, ao mesmo tempo inova ao mostrar o viés feminino de quem vive sob o regime do Partido. As cenas pelas ruas destruídas dos bairros dos proletas são vívidas e podemos sentir o ambiente sombrio do Ministério da Verdade, o luxuoso prédio onde mora O'Brien, a dificuldade diária de Julia e suas colegas no alojamento feminino.

Newman passeia por locais onde Winston Smith não poderia ir. Em um determinado momento do segundo capítulo, Julia sai de seu turno no Ministério da Verdade usando a desculpa “Doença: Menstrual”. Nunca vimos suas interações com outras mulheres no romance original, como Vicky, a quem ela ajuda depois de uma situação complicada no banheiro comunitário no livro de Newman. A vigilância e a perda da privacidade pesam de forma diferente sobre as mulheres, e os riscos em termos de abuso, falta de autonomia física, gravidez indesejada, parecem maiores e familiares aqui, mesmo antes da trama se complicar.

Acompanhamos sua jornada de maneira vívida, intensa e solitária. A infância de Julia é uma mistura de horror e liberdade, que nos leva a ter uma maior compreensão de seu foco na sobrevivência. Sua sexualidade é exposta corajosamente, ainda mais por alguém que faz parte da Liga Antissexo, mas foi moldada por experiências constantes de voyeurismo e abuso. Há partes extremamente incômodas em que Julia se lembra de seu passado, tentando analisar suas experiências por meio da lógica do Partido e é quando descobrimos o quanto essa mulher é forte e traumatizada.

Suzanna Hamilton e John Hurt no filme 1984, adaptação do livro de Orwell, dirigido por Michael Radford.

Neste jogo em que estamos, não podemos vencer. Alguns tipos de derrota são melhores que outros, e só.

O fato mais interessante sobre Julia ser mais nova que Winston, é ela cresceu com um conhecimento menor da época anterior ao Grande Irmão, então ela se sente menos oprimida pelo mundo da Oceania. Julia tem uma visão mais enérgica da realidade, o que lhe permite resistir mais aos horrores que ocorrem, dando-lhe a capacidade de manter um distanciamento cínico do que lhe cerca.

Tal como o livro de Orwell, Julia é um livro amargo, ácido e intenso. Podemos ver que esse mundo é ainda mais opressor para as mulheres. Orwell usa Julia apenas como uma parceira para suas fantasias, mas jamais imaginaria o que Julia pensava sobre ele. Essa inversão foi divertida de ver e Julia ganha contornos que apenas uma mulher conseguiria escrever.

O livro está bem diagramado e revisado, com tradução muito boa de Maíra Meyer.

Obra e realidade
George Orwell pediu desculpas a seus amigos mais íntimos por seu romance 1984. Ele disse a um que era “uma boa ideia arruinada” e ao outro que “estraguei tudo, em parte devido a estar tão doente enquanto o escrevia”. Orwell morreu apenas seis meses depois do lançamento do livro e nunca teve a oportunidade de arrumar qualquer coisa que o desagradasse, mas é uma autocrítica pesada para um dos livros mais celebrados e comentados do século XX e XXI.

A visão mais benigna de Julia sobre o mundo do Grande Irmão, é uma característica de Orwell. Mas como no romance de Newman os leitores passam mais tempo no mundo físico e emocional de Julia, a visão de mundo apresentada através dela é muito menos reprimida. Essas diferenças também têm implicações no estilo do livro. A prosa dura e sombria de Orwell é central para a opressão implacável do seu romance, enquanto o estilo mais vibrante de Newman reflete a resistência vigorosa de Julia ao Partido. Pelo menos até certo ponto, já que com o tempo ela terá que aceitar forças mais sombrias em sua vida.

Sandra Newman

Sandra Newman é uma escritora e professora universitária de redação e literatura.

PONTOS POSITIVOS
Julia
Segue de perto os eventos de 1984
Projeto gráfico
PONTOS NEGATIVOS

Preço


Título: Julia: Uma releitura feminista do clássico 1984
Título original em inglês: Julia
Autora: Sandra Newman
Tradutora: Maíra Meyer
Editora: Jangada
Ano: 2024
Páginas: 455
Onde comprar: na Amazon!

Avaliação do MS?
Este não é um livro para você ler com pressa. Me compadeci de Julia, compreendi suas motivações, me irritei com ela. Julia é uma personagem que nunca vemos se sobressair em 1984 e que merecia ganhar a voz que Sandra Newman lhe deu. É um livro tão amargo quanto o gim servido no livro, mas que vai te deixar tão ou mais surpresa do que eu. Quatro aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também!


Até mais!

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Comentários

  1. Maravilhoso! Não estava sabendo dessa publicação. Já vou correr para procurar. Gosto muito de 1984, apesar de um problema ou outro. Infelizmente está um pouco salgado mesmo. Esperar uma promocha.

    Excelente texto como sempre. Um abraço.

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