Estupro na ficção e os escritores preguiçosos

Passar por essas duas últimas semanas pela internet foi muito difícil. Foi difícil ler cada reportagem que aparecia sobre o estupro coletivo no Rio de Janeiro, foi difícil acompanhar os comentários feitos por gente que tentava justificar o que aconteceu, investigando o passado da vítima, foi difícil ver o gatilho de tantas mulheres sendo acionados por causa desses comentários ferozes e malignos, vindos de pessoas que parecem completamente esvaziadas de empatia.

Mas vimos também textos, protestos, manifestos e muita mulher erguendo a voz contra essa cultura. Não dá mais para ficar calada, cada um e cada uma de nós tem o poder da mudança, desde que estejamos dispostos a mudar. E precisamos fazer isso, pois a cultura do estupro está ao nosso redor, em muitos detalhes, em muitas formas e, especialmente, na ficção.

Estupro na ficção e os escritores preguiçosos

Não são poucos os livros, filmes e séries de TV que trabalham com o tema do estupro em seus enredos. O problema é a forma como esse estupro acontece. Na vida real milhões de mulheres sofreram e sofrem violência sexual diariamente e a ficção, por retratar a realidade, não pode se isentar de mostrar até mesmo os aspectos horríveis.

O principal problema é que, na grande maioria das vezes, o estupro não é mostrado como uma forma de retratar a exploração sexual, os sentimentos da vítima, a forma como a vítima terá que lidar com essa violência ou a cultura do estupro. O estupro é mostrado do ponto de vista masculino e é usado de forma a dar à vítima um motivo para o enredo se desenvolver.

A ficção é uma ferramenta poderosa. Ela pode ser usada para representar, significar, empoderar, informar e entreter. Nós nos identificamos com personagens da ficção, compramos produtos relacionados à elas e sentimos falta de uma melhor representação. Mostrar uma mulher sendo estuprada para que isso seja um gatilho para o enredo - como dar à ela um motivo para odiar o vilão, ou para sua jornada começar - é um retrato da preguiça e falta de empatia de muitos escritores e roteiristas. O estupro é um ponto do enredo, um artifício usado para que a mulher ganhe força onde antes ela não a tinha. Uma forma de apertar estar personagem para que ela se transforme. Ou de colocar aquela personagem (em geral chamada de bitch, ou que seja forte e nem um pouco simpática) em seu "devido lugar". E esse artifício é bastante nítido em enredos onde a mulher praticamente não tenha poder: Mad Men, Game of Thrones, The Americans, House of Cards. A lista continua.

Só que estupro não é nada disso.

Na vida real, a vítima terá que lidar com as lembranças dolorosas, com as consequências da agressão, com as sequelas físicas e psicológicas, a sensação de culpa, a falta de empatia das pessoas, que tentarão achar uma brecha em seu relato, na dificuldade de conseguir atendimento médico e legal, de enfrentar um pelotão de fuzilamento moral caso precise e decida abortar. Na vida crua e real, o estupro não é essa linha imaginária que faz a mulher descobrir que o namorado é um merda. Um estuprador já desrespeitaria essa mulher, essa jovem, desde o começo do relacionamento, não seria a partir do estupro que a faria perceber a vilania do companheiro. Não existe essa fórmula mágica que transforma uma mulher com a qual você não simpatiza em uma com a qual você tenha simpatia, como as produções e livros nos querem fazer crer.

Mesmo dentro das mulheres como um grupo há aquelas que são vítimas maiores da cultura do estupro. Mulheres negras, por exemplo, são sexualizadas ainda mais e ainda mais cedo do que mulheres brancas. Nós vendemos ao exterior as “mulatas”, vendendo a imagem de que a mulher brasileira é fácil e sempre disponível, de que a mulher negra é personificação do sexo, dando toques de racismo à cultura do estupro. Mulheres indígenas, asiáticas e de outras etnias são comumente vistas como exóticas, atribuindo à elas um misticismo racista e misógino que resulta na sexualização ainda maior. Mulheres orientais são constantemente infantilizadas e vistas como bibelôs sexuais. Mulheres bissexuais e lésbicas são sexualizadas e vistas como promíscuas, mulheres trans* muitas vezes sofrem com uma exotificação objetificadora. Isso tudo é cultura do estupro.

Rebeca Puig

O estupro na ficção é rapidamente esquecido, um ponto do enredo que teve destaque para angariar a devida audiência, um ponto para motivar o personagem masculino, um ponto para chocar a audiência (ou excitá-la). Roteiristas e escritores preguiçosos não mostram as perversidades da cultura do estupro, do machismo, não mostram essa vítima desacreditada, nem todas as formas de estupro, desrespeito e violência que acontecem. Eles utilizam a ficção para retratar o senso comum, que prega que estupros não acontecem de verdade, ou não acontecem tanto, ou se acontece, foi aquele desajustado num beco escuro, com uma vítima cujo passado e estilo de vida você aprova. O resto justifica-se.

A escritora Seanan McGuire recebeu uma pergunta de um leitor que a deixou extremamente irritada. Ele queria saber quando que as protagonistas dela seriam estupradas. Quando ela disse que não faria suas personagens passarem por isso, o indivíduo replicou, dizendo que achava que a escritora teria mais respeito por suas personagens e de que não estuprá-las seria "irreal". E Seanan foi bem direta: não há motivo cabível para uma protagonista feminina ser estuprada apenas por ser estuprada, para satisfazer o desejo do público masculino. E ela não fará isso.

O estupro não pode ser sexy. E ainda assim muitas cenas são retratadas desta forma. Ele nem mesmo precisa aparecer para ser considerado um estupro. E mesmo quando a vítima está dizendo não, mesmo quando o estuprador diz "Eu não me importo" (Game of Thrones, e aquela cena deplorável), ainda há quem diga que aquilo não foi um estupro. Em Mad Max - Estrada da Fúria, o diretor não precisou demonstrar o estupro de cada uma das noivas ou das mulheres ordenhadas para que acreditássemos que eles ocorreram. Mas na vida real, nem mesmo fotos e vídeos de estupro fizeram uma parcela da população acreditar que houve um.

Se o estupro é esse ponto de virada de uma personagem, por que tão poucos homens foram estuprados na ficção? Por que somente a mulher é tão fortemente estigmatizada com o fardo do estupro em livros, séries de TV, em filmes? Porque nossa sociedade aceita o estupro de uma mulher, já que há formas de deslegitimar a violência que ela sofreu, ainda mais em uma sociedade misógina, uma sociedade que odeia as mulheres. E é assim que se constrói uma cultura do estupro, com a dessensibilização da audiência, da população, que aceita como corriqueiro um ato como este. Que aceita que ele seja justificável.

Se uma cena de estupro não servir para expôr o problema da violência sexual no mundo, se ela não servir para dar voz e face às vítimas, se ela não servir para mostrar o quanto a violência sexual difere de outros tipos de violência, essa cena é inútil, a não ser como um artifício preguiçoso para ganhar audiência masculina. As vítimas precisam de voz e a ficção está falhando com elas.

Está na hora de dar um basta na cultura do estupro, seja na ficção, seja na vida real.

Enquanto os homens forem ensinados a igualar dominação violenta e abuso de mulheres com privilégio, eles não entenderão o dano feito para eles e para os outros, não terão nenhuma motivação para mudar.

bell hooks

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Sabia que você faz parte da cultura do estupro?

Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Eu já cansei de ler uma penca de livro em que a personagem feminina é submetida a toda sorte de porrada e abuso na vida pra que o leitor sinta pena... do protagonista que tá perto dela. Isso quando o autor não resolve criar uma personagem perturbada e a única coisa que ele sabe fazer pra isso acontecer é botar ela pra ter sido estuprada no passado. Tem mil e uma coisas que podem servir de trauma pra uma personagem, mas violência sexual é sempre a opção que fica no topo da lista.

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  2. Digitando com os pés, porque com as mãos estou aplaudindo! Compartilhando já!

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  3. Nossa, excelente! E não só na FC - tem autores dos gêneros de horror, em especial,que fazem disso praticamente a sua assinatura pessoal. E na maioria absoluta das vezes, é sem sentido ou necessidade narrativa.

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  4. Excelente texto! Concordo plenamente.

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  5. Parabéns pelo texto. Todo esse episódio do estupro coletivo da jovem, exatamente pelo fato de ter acontecido com uma jovem negra, pobre, que andava (provavelmente) na companhia de criminosos e (provavelmente) utiliza drogas, acabou expondo o quanto a cultura do estupro está embutida na nossa sociedade, e em nós. As pessoas questionando o quanto ela "procurou" isso e até que ponto a culpa é da vítima é um lençol freático de chorume vazando incessantemente, se demonstrando cada vez maior e mais profundo do que a gente pensa. O mesmo vale para a ficção. Esse texto me fez repensar várias obras como o "novo" Tomb Raider (2013) que sempre imaginei um game de empoderamento feminino, agora já não tenho certeza. E o pior é isso, por ser homem, provavelmente por ser hétero e criado nesse tipo de cultura, não é tão fácil o discernimento de qual a violência sexual descrita da forma correta na ficção.

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  6. Adoro The Americans, mas a cena comentada me tirou da série, me fez me perguntar do real sentido daquele cena ter acontecido e se de fato era necessária. Desde que comecei ler mulheres reclamando sobre esse uso desnecessário do estupro para o desenvolvimento de personagens, me incomoda sempre que ela surge sem ter um significado, ou motivo, ou mesmo quando ela surge. Desde Game of Thrones a Senhor dos Dinossauros, que fortalece toda uma personagem para no final diminui-la com um estupro. Aí que se dá a importância de mais mulheres contarem suas histórias, de mais grupos ganharem representatividade na hora de falarem de seus papéis, pois por mais que eu se sentisse aberto em vários assuntos nunca que eu imaginaria todo o impacto que o uso dessa violência de poder não-sexual poderia desencadear, pois sou homem com empatia, mas que não tem a vivência, que só irei adquirir um relato dela quando escutar mais mulheres falando sobre suas vidas.

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