Tive o privilégio de poder ler este livro antes de seu lançamento. Ele já se encontra à venda na Amazon e na loja oficial da editora DarkSide. Aqui nós temos o conto de Hans Christian Andersen, A Pequena Sereia (em dinamarquês: Den Lille Havfrue), sob uma roupagem feminista e que transforma completamente a visão que a maioria das pessoas têm da sereia, aquela que veio com o famoso filme da Disney.
O livro
Gaia é o nome que sua mãe lhe deu. Mas é um nome proibido, pois é um nome do mundo dos humanos. Seu nome, aquele usado por seu pai, o Rei dos Mares, por suas irmãs, por sua avó, é Muirgen. A vida no fundo do mar não é nenhum conto de fadas. As sereias só precisam ser bonitas, elas não têm nenhuma outra função além dessa. Inteligência, perspicácia, ambição, ousadia não são palavras que as belas sereias devem usar. É uma vida de opressão e silenciamento constante.Nunca me deixaram falar demais. Meu pai não é muito chegado em garotas curiosas, então eu simplesmente mordia minha língua.
Gaia sente que há muito mais no mundo para se ver e viver do que ser apenas uma bela sereia. Afinal, não é assim com a gente também? É essa a sua maldição, inclusive: ser bela, a mais bela de todas as suas irmãs e a mais cobiçada. Até seu pai lhe dirige olhares maliciosos e exige sua obediência e beleza em eventos oficiais do reino. Mas um assunto no palácio é proibido: sua mãe. Não se fala dela, em nenhum lugar, pois ela teria abandonado a família e ido para o mundo humano, onde foi capturada e morta. Gaia sente profundamente que não isso o que aconteceu.
O que você sente de Gaia quando lê o livro é uma profunda e intensa tristeza, daquelas que a gente sente por não poder ter voz, por não poder ter o domínio de sua própria vida. Gaia viveu uma vida de opressão, nunca podendo comer demais, pois seu pai abominava sereias gordas. Ela e suas irmãs iam para a cama com fome e cansadas da eterna máscara de sereia bem comportada. Você avança a leitura sentindo que está no mar, junto com elas, criada para atender às expectativas dos outros.
Louise segue basicamente toda a estrutura do conto de Andersen, com coisas que não vimos no filme, porém coloca as reflexões que nunca foram feitas, visões que não tivemos antes. O relacionamento com a avó e as irmãs, por exemplo, é pouco explorado no conto, enquanto aqui a autora aprofunda esses relacionamentos. Tal como é aqui na superfície, no reino as sereias são mantidas em constante competição, pois até mesmo os tritões sabem que quando as sereias se unem e se apoiam, elas são mais fortes.
Não é elegante para uma mulher ficar fazendo montes de perguntas. (...) Não é elegante para uma mulher ficar querendo coisa também. Faça um esforcinho para se lembrar disso.
Quando enfim Gaia recebe a permissão para ir à superfície em seu aniversário de 15 anos, ela presencia um naufrágio e então se enamora da figura de Oliver, uma das vítimas e que acaba sendo o único sobrevivente, já que ela o arrasta até a praia. Pelo ano seguinte ela vai pensar nele e em como gostaria de ter a chance de ser humana e amá-lo. Pois assim, quem sabe, ela poderia viver também.
A armadilha dessa paixão súbita de Gaia pelo humano é justamente essa: botar na mão de um estranho toda a sua vida e sua felicidade. Não é isso o que fazem com a gente? Não importa o quanto você ganhe, quantos títulos você tenha, quantas viagens você fez; para algumas pessoas você é uma fracassada porque não casou nem teve filhos. A sereia não é livre, ela só tem valor se estiver atrelada a um tritão. Neste reino dos mares o maior medo das sereias e tritões é com as Rusalka, criaturas abomináveis (do ponto de vista das sereias) que nasceram humanas e tiveram mortes violentas, tornando-se os seres governados pela Bruxa do Mar, chamada Ceto. São as inimigas do Rei dos Mares e muitos acham que não deveria ter tido uma trégua entre eles.
Existem tantos subtextos e discussões a serem feitas no livro que não dá para elencar todas elas em um único post. São discussões sobre racismo e misoginia, estupro e silenciamento, homofobia e repressão, todos discutidos de forma a não acionar gatilhos, mas sem deixar nenhum assunto de fora. Há uma questão que não ficou de fora do filme, mas que foi amenizada pela Disney: o fato de Gaia ter que se mutilar para poder agradar a um homem. Aqui é bem mais brutal e ela não ganha aquelas perninhas fofas e fininhas que vemos em Ariel; aqui, tal como no conto original, seus pés sangram diariamente e suas pernas doem como se ela pisasse em facas.
O final difere do conto original e obviamente do filme da Disney. Mas achei que foi um tanto rápido demais. Quem ler entenderá como se deu o esclarecimento de Gaia e a virada do final. Li algumas resenhas negativas no Goodreads que dizia que o livro não era nada disso que estava sendo vendido e que tinha "apologias" até mesmo à pedofilia. O que algumas pessoas não entenderam é que discutir o assunto não é apoiá-lo. O livro discute todos os temas que eu elenquei; isso não é apologia. Então pode ler tranquilamente.
Alguns homens têm muito medo de mulheres, minha criança. Esse homens são os que mais nos desejam, e são os mais perigosos quando não conseguem o que almejam.
Algumas frases e posicionamentos colocados pela autora me pareceram artificiais em alguns momentos. Pareceram mecânicas e forçadas. Os personagens masculinos me pareceram estereotipados em alguns momentos, mas há uma função para eles serem assim neste mundo. No fim é um livro triste, mas que deve ser lido e bastante discutido. A tradução está muito boa, feita pela Fernanda Lizardo e mesmo lendo a prova do livro não encontrei grandes problemas de revisão.
Obra e realidade
Louise contou que reescreveu o conto original da forma como gostaria de tê-los lido quando era criança e adolescente. Eu mesma vi o filme da Disney umas 500 vezes, sabia de cor as músicas, mas apesar de muito bonitinho e engraçadinho, achava o filme vazio, até mesmo prejudicial pelas mensagens que passava. Não só A Pequena Sereia, como também A Bela Adormecida, um filme em que o amor verdadeiro dos pais não conta, mas um príncipe que você nunca viu na vida te ama em questão de minutos. Além disso, consumimos estes contos pasteurizados pela Disney, mas o conteúdo original deles era absolutamente aterrador.Aqui entra a importância de termos livros e filmes que tragam mensagens positivas e reflexões sobre os nossos tempos. Se os filmes das princesas clássicas eram "adequados" para a época em que foram produzidos, hoje eles não são mais. Minha princesa favorita é a Merida, de Valente, pois eu vivi uma vida inteira ouvindo "não é assim que mocinha senta", "não é assim que mocinha se veste", "olha essa boca, mocinha!" e a identificação foi imediata, como nunca me identifiquei com nenhuma das princesas "donas de casa" anteriores.
Louise O'Neill é jornalista e escritora, nascida na Irlanda. Mudou-se para Nova York para trabalhar na revista Elle, mas voltou para sua cidade natal em 2011 onde focou na carreira de escritora. Já publicou quatro livros e recebeu diversos prêmios e nomeações com suas obras para o público adulto jovem. Atualmente escreve artigos sobre feminismo, moda e cultura pop para uma variedade de jornais e revistas irlandesas.
O não de uma mulher pode ser facilmente transformado num sim por homens que não querem levá-lo a sério.
PONTOS POSITIVOS
Baseado no conto original
Discussões sobre misoginia
Diferente do filme da Disney
PONTOS NEGATIVOS
Violência
Alguns diálogos ruins
Baseado no conto original
Discussões sobre misoginia
Diferente do filme da Disney
PONTOS NEGATIVOS
Violência
Alguns diálogos ruins
Avaliação do MS?
Este é um livro difícil por todas as implicações e discussões feitas. Fala de uma sereia queria ser uma mulher, alguém que pressionada pelas convenções mutila seu corpo, achando que por ter a beleza etérea que tinha já seria o suficiente para ser feliz. Mas beleza acaba. É algo que é passageiro e transitório. É uma jornada onde vemos a sociedade por sua crueza e maldade e como ela pode nos transformar no final. Quatro aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também.Até mais! 🧜♀️
É o seu pai que tem insistido em me chamar de ❛bruxa❜. Este é simplesmente um termo que os homens dão às mulheres que não têm medo deles, às mulheres que se recusam à submissão.
Já estava ansiosa por ler esse livro, por ter um amor incompreendido por sereias, e agora por saber de todo assunto que ele reporta eu estou muito mais ansiosa!! Amei a resenha!
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