Sou obrigada a problematizar tudo?

Sou obrigada a problematizar tudo?


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Quando Caixa de Pássaros saiu na Netflix, assisti logo no primeiro dia, até porque sou fã do livro e estava curiosa para ver a moça do filme Sandra Bullock no papel da Malorie. Gostei muito da atuação dela e do filme em si e de como eles adaptaram uma obra escrita para as telas. E percebi que havia uma narrativa secundária ali que indicava uma jornada de uma mulher desconectada da maternidade. Sentei e escrevi o que achava, assim como fiz com inúmeras obras de entretenimento em todos esses anos de blog.

Vi outras interpretações muito legais do filme, inclusive debatendo a questão da depressão. Ri de alguns memes de pessoas com olhos vendados depois de assistir ao filme. E também vi gente reclamando que não tinha visto nada demais no filme, que não entendia essa problematização toda, "que povo chato do caralho".

Dizem que a problematização é um caminho sem volta: uma vez que você começa, não consegue mais tirar o óculos da visão crítica da cara. Existem subtextos e narrativas que podem ser feitas de muita coisa, de Invasão do Mundo - Batalha de Los Angeles até A Chegada. Mas se você quer apenas se divertir, isso não foi proibido. Inclusive adoro.

Eu vejo muita coisa apenas para espairecer, me divertir ou ficar sem pensar por umas duas horas. É indústria do entretenimento, afinal de contas. A questão é que nada se faz na indústria do entretenimento, ou da arte, ou da literatura, de qualquer área humana, sem ser uma decisão política. Quem está na liderança e nos cargos de chefia muitas vezes influenciam nas escolhas de elenco, de diretor, de roteiro e o que consumimos está pautado nessas decisões. O fato de termos protagonistas homens, cis, brancos e heteros em uma cacetada de produções é uma decisão política.

A forma como os filmes mostram mulheres, população LGBT+, pessoas com deficiência com base em estereótipos também são decisões políticas. Tudo isso se baseia numa sociedade que cresceu se baseando na exclusão e no preconceito, criando caricaturas de seres humanos e se valendo dessas caricaturas para criar enredos. É por isso que o que se aceitava numa época não se aceita na outra, quando o público cria uma consciência coletiva de que aquela piada, aquela interpretação, aquela caracterização, é pejorativa e preconceituosa.

É por isso que a gente reclamou quando saiu Star Wars - O Despertar da Força sem os brinquedos da Rey, que é só a protagonista do filme. É por isso que a gente enfrenta até hoje os nerds babões que reclamam do filme das Caça-Fantasmas (2016) a ponto de agora surgir um remake só com homens. Se a gente não se movimentar, a indústria também não se mexe para representar as pessoas pelo o que elas são.

Vi vários textos de mulheres que viram Caixa de Pássaros e se identificaram com a jornada de Malorie e sua aceitação da maternidade. Mas também vi gente querendo invalidar a identificação dessas mulheres, dizendo que agora se problematiza tudo, que saco, que inferno. Espera aí, meu amigo. Quem é você para invalidar a experiência e a identificação de quem quer que seja com um produto cultural? A arte está aí justamente para incomodar os acomodados, dar conforto para quem sempre se incomodou. A arte está aí para nos fazer refletir, admirar, para protestar.

Acho que as pessoas não entenderam que se aquela mulher se sentiu representada pela Malorie e por sua luta pela sobrevivência, ela não está invalidando a experiência pessoal de ninguém, ainda que seja só diversão, para espairecer, um filminho para assistir nos sábados. Sabe aquela coisa de "o seu direito acaba quando o do outro começa?". Então, aqui é a mesma situação. Você viu o filme apenas pelo suspense? Beleza. A pessoa que sentiu representada pela Malorie e sua jornada também assistiu e se identificou com ela. E isso não tem nada a ver com você. Assim como a pessoa viu narrativas falando sobre depressão.

Experiência pessoal é isso, experiência pessoal. As pessoas têm vivências diversas e são muitas as interpretações que alguém pode fazer, às vezes é algo que você realmente nunca reparou. Não seria mais interessante para todos se as pessoas apenas conversassem a respeito ao invés de atacar uns aos outros? E entenda que a crítica não impede ninguém de continuar consumindo o que quer que seja. Existem coisas ofensivas e mal escritas, mal interpretadas, em praticamente tudo. Sou a primeira a apontar os problemas de Star Trek e ainda sou fã e grande consumidora.

Mas querer que as pessoas parem de discutir os produtos culturais com os quais se identificaram porque alguém se incomodou? Pergunte-se primeiro por que você se incomodou com a opinião da outra pessoa, pois isso diz muito mais sobre você do que sobre o outro ou até mesmo o filme que ela assistiu. Existem muitos subtextos nos produtos culturais que consumimos, alguns bem feitos e outros nem tanto. As pessoas vão tirar dessa experiência significados que nem todos vão entender, gostar ou mesmo se identificar. Mas toda vez que alguém faz isso, surge o dedo apontando que problematização agora é modinha.

Então, resumindo: não, você não tem obrigação de problematizar tudo, até porque experiência pessoal nem sempre é uma problematização. Existem relatos e mais relatos de pessoas que se apoiam nestes produtos culturais, que se fortaleceram por meio deles, que se sentiram abraçadas e compreendidas por séries, filmes, livros, quadrinhos e às vezes é só isso mesmo.

Até mais! ❥

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