A desumanização em Flores para Algernon

Flores para Algernon já um dos meus livros favoritos para a vida. Triste, desolador, amei tudo. Leitura obrigatória em muitas escolas dos Estados Unidos, o livro evoca uma série de questões bioéticas, humanas, científicas e, assim como Frankenstein, o livro não abomina a ciência, mas sim questiona a ética de seus executores.

A desumanização em Flores para Algernon

Para a resenha de Flores para Algernon, clique aqui.

Asimov escreveu que Flores para Algernon o atingiu diretamente, deixando-o embasbacado com a delicadeza da obra e com a habilidade do autor. Escrito primeiro como conto e depois como romance, Daniel Keys inspirou-se em vários fatos de sua vivência, em especial no questionamento de um estudante de uma classe para alunos de baixo QI que quis saber como que ele fazia para ficar mais inteligente.

Em sala de aula eu já vi alunos duvidando de si mesmos, querendo ser mais do que eram, mas que achavam que não tinham potencial, nem a inteligência, nem condições. E eu insistia que existem diferentes tipos de inteligência e que eles apenas precisavam descobrir qual era a deles. Que não existe ninguém burro. Bem, não de propósito, pois tem aqueles que viram comentaristas do G1.

Enquanto lia o livro, fiquei pensando se o procedimento que o protagonista do livro, Charlie Gordon, passou estivesse disponível para qualquer pessoa. Quantas pessoas que se acham burras, ou que ouviram isso uma vida inteira, que nunca tiveram chance de desenvolver seu potencial, entrariam na fila para fazer a cirurgia? A desumanização já começa aqui. Pessoas acreditam que são burras e ignorantes e provavelmente se sujeitariam a isso sem antes buscarem por outros meios de desenvolver sua inteligência ou aprendizado. A solução mais rápida é sempre a preferida.

Durante a Segunda Guerra Mundial, os nazistas fizeram experimentos com pessoas que eles julgavam "inferiores", como judeus, povo roma, pessoas com deficiência, negros e homossexuais. Se toda uma civilização tivesse gênios instantâneos, o que ela poderia fazer com aqueles que não passaram pela cirurgia para aumentar a inteligência? O livro evoca essa discussão, mesmo que indiretamente, porque as pessoas que passaram pelos experimentos dos nazistas foram desumanizadas.

Charlie, em um determinado momento do livro, comenta sobre isso. Ele percebe que ninguém o via como um ser humano antes da cirurgia. Era sempre um experimento, uma cobaia, igual ou inferior ao ratinho Algernon, que também tinha passado pela cirurgia e tratamento hormonal. Não sabemos como o tratamento e o procedimento são feitos, até porque não importa. Sabemos apenas que funciona. Talvez hoje a tecnologia usada por Keys fosse a terapia genética ao invés de uma cirurgia no crânio. Mas tem suas consequências.

Ao se "tornar inteligente", Charlie começa a ver que aqueles que ele considerava grandes amigos, que tanto gostavam dele, na verdade faziam chacota de sua "burrice" e o usavam para todo tipo de piadas sem graça e pegadinhas. Eles eram cruéis mesmo, a ponto de mandá-lo procurar os amigos na esquina e todos sumirem. Ele não percebia a malícia nas palavras e nos gestos e depois do procedimento começa a revidar das injustiças. Ao conseguir analisar as pessoas, ele percebe que sua inteligência o afasta da grande maioria delas. Por não compreendê-las e por ser incompreendido.

As consequências do procedimento simbolizam a futilidade da medicina em tentar alterar aspectos fundamentais da condição humana, como os relacionamentos, a infelicidade, a inteligência e a consciência das pessoas. Os cientistas deveriam buscar maneiras de integrar as pessoas na sociedade e não alterar quem elas são para que se encaixem em um modelo inatingível estabelecido pelo status quo. A medicina deve melhorar nossa saúde, nos dar qualidade de vida, curar nossas doenças, mas na tentativa de tornar Charlie um ser "inteligente" os cientistas acabaram se igualando aos médicos nazistas, que o desumanizaram, querendo apenas dados, números e gráficos.

Sou como um animal que foi trancado do lado de fora de sua jaula boa e segura.

Página 107

E se a medicina nos desumaniza, acontece o que aconteceu com Ellen Maud Bennett, que procurou médicos descrevendo uma série de sintomas e eles a descartavam, dizendo que era só uma questão de emagrecer e ela se livraria deles. Aos 64 anos, ela morreu de um câncer inoperável. Ou como aconteceu com a Íris Figueiredo, que com um ligamento do joelho rompido e precisando de cirurgia, os ortopedistas lhe disseram que o problema era seu peso.

A obra de Keys permanecerá atual enquanto nós desumanizarmos uns aos outros. E para a desumanização apenas a educação e a empatia resolveriam.

Até mais.

♥️ A arte da imagem é da designer gráfica Jooyeun Lee.

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