The Titan e bioética

The Titan é um filme recente de ficção científica da Netflix. Em uma Terra superpopulosa em 2048, os cientistas voltam suas atenções para Titã, o maior satélite natural de Saturno e o segundo maior de todo o Sistema Solar, atrás apenas de Ganímedes de Júpiter. É o único satélite que possui uma atmosfera densa e o único objeto estelar além da Terra onde já foram encontradas evidências concretas da existência de corpos líquidos estáveis na superfície. Com lagos de hidrocarbonetos, é um bom candidato a abrigar vida e se torna o alvo dos cientistas para levar humanidade.

The Titan e bioética

Mas tem um problema: seres humanos não podem sobreviver na superfície de Titã. É um lugar muito frio, com apenas 5% de oxigênio, atmosfera rica em nitrogênio, metano e amônia. Se for para a humanidade encontrar em Titã um novo lar, teremos que forçar nossa evolução e criar corpos resistentes para este ambiente.

Assim, os cientistas reúnem em uma base militar vários candidatos fortes e saudáveis o suficiente para que possam sobreviver ao tratamento intensivo e depois enviados a Titã para começarem a preparar terreno para a mudança da humanidade. Rick Janssen, interpretado por Sam Worthington, é um piloto de combate que sobreviveu em condições adversas no deserto, o que o qualificou para o programa. Sua esposa, que é pediatra, precisou largar sua carreira para acompanhar o marido e toda a família se muda com ele para a base, onde os testes começam.

Levemente inspirado no livro Man Plus, de Frederik Pohl e apesar de óbvios problemas com o enredo em si e até algumas atuações, o filme toca em um ponto de extrema importância e ecoa um dos grandes clássicos de ficção científica. Frankenstein, de Mary Shelley falou de bioética quando essa palavra ainda não existia. Definindo:

Bioética é o estudo transdisciplinar entre Ciências Biológicas, Ciências da Saúde, Filosofia, Ética e Direito que investiga as condições necessárias para uma administração responsável da vida humana, animal e ambiental.

Enquanto eu assistia ao filme, me peguei pensando: não seria mais interessante investir aqueles milhões de dólares em pesquisa médica na tentativa de salvar o planeta? Investir maciçamente em planejamento familiar, em políticas de filho único do que tentar adaptar em velocidade recorde o corpo humano para tentar viver em um ambiente que, obviamente, é hostil demais? Será que depois de desgraçar este corpo celeste aqui, temos que sair e procurar outro para fazer a mesma coisa?

Não apenas há uma questão política e econômica no filme, mas há também a questão de alterar nossa biologia para adaptação em outro ambiente. Não se engane, alteramos nosso corpo diariamente. Tatuagens, brincos, remédios, hormônios, próteses, cirurgias. Algumas pessoas estão praticando o biohacking, implantando chips e sensores, fazendo experimentos com nanorobôs e novas drogas inteligentes para operar o corpo por dentro. Mas estas não são modificações genéticas. Não estamos alterando os alvéolos dos pulmões para respirar nitrogênio.

A questão da evolução forçada, por sua vez, mexe diretamente com os 4,5 bilhões de anos de organismos que tiveram condições e tempo para se adaptarem à Terra. O próprio filme alerta a respeito, mostrando até onde a modificação pode mexer com nossos cérebros e com quem somos. E isso levanta uma série de questionamentos que Frankenstein e tantas outras obras posteriores fizeram, sempre rondando a questão bioética. O que define nossa humanidade? Quais são os critérios que nos definem como seres humanos, biológica e eticamente? Se nossa genética for alterada para possibilitar a sobrevivência em outro planeta, continuamos humanos?

Um exemplo: alterando nossa capacidade de respirar e se alongarmos demais o corpo, como em um ambiente de baixa gravidade, nossa voz sofrerá modificações. Atividades como cantar serão profundamente modificadas e a fala e a linguagem são características intrinsecamente ligadas à socialização, aprendizado, identidade.

Alguns cientistas questionam se teremos condições de sobreviver em outros planetas. Faz sentido, já que nosso corpo é o resultado de uma longa história evolutiva que nos tornou não os mais aptos, mas os sobreviventes mais resistentes. Ao mesmo tempo que temos córtex superior e polegar opositor, nosso corpo é extremamente sensível às mudanças ambientais. Não sobrevivemos em ambientes com temperaturas altas ou baixas demais. Uma missão espacial de longa duração que leve uma tripulação ganha valores proibitivos justamente por precisar manter pressão, ar, suprimentos, água, gravidade.

Todas as espécies do planeta possuem um tempo de vida que varia entre 1 e 3 milhões de anos. Quando o meteoro caiu há 65 milhões de anos, muitas espécies de dinossauros já estavam extintas e outras estavam em seu derradeiro fim. Já que não estamos fazendo um bom trabalho em manter este planeta aqui são e salvo para nossa própria sobrevivência, talvez devêssemos concentrar nossos esforços em manter nosso modo de vida de forma sustentável e pelo tempo que for necessário, até que nossa própria espécie pereça. O que vai acontecer, não se engane.

Tanto Frankenstein quanto The Titan mexem com o egocentrismo humano de querer agir como deuses. Titã, na mitologia grega, eram proto-deuses, que desafiaram Zeus e os outros deuses pelo poder. Ou seja, as duas obras nos falam que nossas criações podem se voltar contra nós ao darmos a elas mais poder do que podem administrar. Além disso, mexem com a criação e adaptação da vida em si e de como os organismos podem reagir a isso. A ficção científica nos mostra que a reação costuma ser a pior possível.

No mais, não sei dizer se devemos ou não mexer com nossa evolução e forçá-la para gerar uma espécie diferente. Quem pode garantir que continuaremos nós mesmos? Como garantir que o Homo sapiens superior não acabe com seu antecessor?

Até mais!

Leia também:
Lago e praias em Titã, lua de Saturno - Scientific American

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