Não lembro de ter lido um livro tão perturbador em um bom tempo. Os autores Jerker Eriksson e Håkan Sundquist, que assinam como Erik Axl Sund, criaram um enredo absolutamente bizarro, mas que trata de um assunto de extrema importância, que assola todas as sociedades: pedofilia. Não apenas ele falam da pedofilia como falam da forma como as vítimas acabam sobrevivendo aos abusos. Eles levam o leitor por caminhos nem sempre fáceis e tem momentos que você sente que tudo o que leu é mentira.
O livro
Originalmente publicado como uma trilogia, o livro saiu como um único volume denso no Brasil. A história começa com um assassinato estranho. A polícia é chamada para uma estação de metrô onde, no jardim, um corpo mumificado de um garoto foi encontrado. A necropsia é ainda mais esquisita. Ele tem traços de anestésicos no corpo que foi cuidadosamente curtido e sua umidade retirada. Ninguém viu nada, ninguém sabe de nada.Enquanto a policial responsável pelo caso tenta puxar listas de crianças desaparecidas e possíveis pedófilos e estupradores atuando na área, passamos a acompanhar a vida de uma psicóloga, especialista em traumas infantis. Os autores mostram a vida íntima das protagonistas, então também oscilamos em suas vidas pessoais e é justamente os crimes bizarros que vão colocar as duas em contato e logo um sentimento começa a surgir entre elas.
Os autores começam então a nos levar pelas memórias aleatórias que pensamos em um momento pertencerem à assassina. E conforme você acompanha a correria da polícia em investigar os assassinatos, a politicagem que impede que novas descobertas sejam feitas e como uma rede de pedófilos começa a ser descoberta, é notável perceber que você vai ser enganado e vai curtir cada momento.
Por tratar de um tema tão pesado e que é um sério problema social, a pedofilia, os autores souberam dosar a mão na hora de tratar do assunto. E mesmo com assassinatos e crimes tão brutais, o choque do leitor será dirigido para a descoberta de tantas identidades e pessoas envolvidas em um estranho culto cujas ramificações se espalharam por vários postos da política e até a promotoria de Estocolmo. Como uma policial sozinha e com poucos recursos pode combater isso? Jeanette Kihlberg é uma das melhores personagens da trama, determinada, com um casamento infeliz, que se apaixona por uma psicóloga e de repente começa a deixar passar detalhes importantes da investigação. Teve momentos em que eu quis sacudir a detetive para fazê-la voltar ao prumo. E para dizer umas boas verdades ao vagabundo do marido dela.
Como, originalmente, era uma trilogia, quando você vence as primeiras duzentas páginas, o livro pára subitamente. Aquele ritmo alucinante que te acompanhou por toda a leitura até então sofre uma parada brusca e até ele retomar demora. Mas demora! Tinha momentos que eu achava que o livro vinha criando páginas sozinho, pois ele não acabava. Alguns momentos não fizeram nenhum sentido na narrativa e a impressão é que foi colocado ali apenas pelo choque narrativo, como o sumiço do filho de 13 anos de Jeanette ou apenas para preencher páginas mesmo.
Apesar desses problemas, a forma como a narrativa foi desenvolvida, em especial em torno dos criminosos vai te fazer mudar de ideia a respeito deles. O que você achava já ter desvendado lá no começo cai por terra quando você está perto do final. Não foram recursos usados de maneira indiscriminada, somente pelo choque, pelo plot twist. Foi muito bem desenvolvido pelos autores. Viajar pela psique humana e acompanhar a vida de sobreviventes de abuso e estupro é algo difícil de se fazer, mas necessário. E muitas vezes as vítimas precisam se reconstruir sozinhas depois de eventos como esse, o que nem sempre é benéfico para elas.
Com muitas descrições das ruas de Estocolmo e de cidades próximas, a gente meio que se perde com tanto nome de rua que não conhecemos. Nesse sentido eles exageraram, não pensaram no leitor de fora. Há também um exagero na hora de mencionar os nomes dos personagens, que são vários, pois toda santa vez que eles apareciam vinham os nomes inteiros. Sem apelidos, nem mesmo o primeiro nome, mas quase que a ficha corrida inteira. Há também uma menção às favelas do Rio de Janeiro que foi bem mal escrita, como "casas feitas de lixo e coisas achadas na rua".
A edição da Companhia das Letras está bem acabada, apesar de pesada para ler. Praticamente não encontrei erros de tradução ou de revisão, talvez um outro de digitação e só.
Obra e realidade
Pedofilia é uma mazela social. Acompanha a sociedade e sua cultura de juventude desenfreada, é enaltecida em músicas sobre "pegar novinhas", é muitas vezes abafada nos seios familiares e mantidas em longas redes de exploração. Varrer o assunto para debaixo do tapete apenas ajuda a perpetuar o crime. E este não é um tema muito comum em livros. Foi uma atitude corajosa dos autores em trazer o assunto para a ficção, onde há momentos em que você não sabe se está lendo algo real ou fictício.Os autores Jerker Eriksson e Håkan Sundquist, que assinam como Erik Axl Sund |
Outra coisa que o livro aborda: a maneira como os pedófilos justificam seus crimes. Alguns falam que é uma forma natural de "relacionamento" ou então, o mais chocante ainda, que a criança "o seduziu". Nossa sociedade ainda não encontrou uma maneira de lidar com a pedofilia, nem de como ajudar as vítimas e proteger as crianças.
PONTOS POSITIVOS
Bem escrito
Personagens perturbadores
Jeanette e Sofia
PONTOS NEGATIVOS
Pedofilia
Se arrasta
Muito longo
Bem escrito
Personagens perturbadores
Jeanette e Sofia
PONTOS NEGATIVOS
Pedofilia
Se arrasta
Muito longo
Avaliação do MS?
Não vou dizer que será uma leitura fácil, porque não será. Mas se você persistir, lerá um grande thriller policial, com personagens irritantemente bem construídos e um tema pesado, mas muito bem trabalhado pelos autores. Mesmo com o ritmo diminuindo drasticamente lá pelo meio, o livro retoma alucinadamente e te entrega uma situação completamente inesperada. Sabe quando você é enganada de bom grado? Esse é um daqueles casos. Quatro aliens para o livro e uma recomendação para você ler também.Até mais!
Esse review me deu lembranças de Lolita
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