Esse estereótipo é tão comum que você pode nunca ter reparado nele, mas acredite, não apenas está lá como também é danoso e preconceituoso. Ao usar a maldade ou ganhar super poderes do mal, o vilão ou vilã acaba ganhando uma marca, uma cicatriz ou fica desfigurado. Este seria um efeito colateral da maldade que o vilão impõe aos outros, tornando-o diferente do mocinho ou das pessoas inocentes a quem massacra impiedosamente. Em outros casos, o vilão não apenas fica desfigurado em sua louca e insana busca pelo poder, como também pode perder membros ou ganhar membros extras.
Deve ter lembrado de um monte de vilões da cultura pop só com o parágrafo acima, certo? O problema disso é ser um estereótipo capacitista e que caracteriza pessoas que possuam cicatrizes ou deficiências (sejam congênitas ou não) como sendo malignas. O único corpo tido como bom e desejável é o corpo do mocinho ou mocinha, magro, tido como perfeito, atlético, sem marcas (e branco, geralmente). A própria Dra. Veneno do filme da Mulher Maravilha é um exemplo desse estereótipo. E quando seu rosto mutilado nos é revelado, a vilania é trocada por pena, o que é ainda pior.
A Bruxa Malvada do Oeste, Freddy Krueger, Voldemort, Darth Vader, Immortan Joe, Imperador Palpatine, Dra. Veneno, Dr. Octopus, Coringa, Le Chiffre, Raoul Silva e quase todos os vilões da franquia James Bond, e tantos outros. Todos eles possuem algum tipo de característica física que os tornam grotescos ao olho do espectador quando comparado com o mocinho. No caso de James Bond, o vilão Raoul Silva, de Skyfall, mostrou o quão mau ele era quando aparece fisicamente desfigurado, mostrando o rosto destruído pelo cianeto à M de forma a justificar sua maldade. Le Chiffre, em Casino Royale, tinha seu olho cego que chorava sangue.
O vilão aparece apenas para dar um propósito à jornada do herói, então você dificilmente terá sua história de vida, como a vilania apareceu. A única mensagem passada é que você deve temer pessoas cujas faces e corpos sejam diferentes do seu ou do padrão. Até A Ameaça Fantasma, o grande público nada sabia a respeito da vida de Darth Vader. É então que conhecemos a criança fofa, o adolescente bonitinho, o Jedi adulto e quando passa para o lado sombrio, ele sofre as amputações e as terríveis queimaduras que o levaram a ser Darth Vader.
Voldemort tem um começo semelhante. De um charmoso estudante de Hogwarts que começa sua busca pelas artes obscuras da magia, ele se torna aquele ser viperino, de face deformada, que até parasita foi no professor Quirrell. No caso da Branca de Neve, a rainha se transforma em uma bruxa corcunda e de nariz grande e pontiagudo na tentativa de enganar a princesa para que ela coma a maçã. Só nessa cena que sua maldade "de fato aparece", pois o estereótipo prevê que gente bonita não faz coisa ruim.
A escritora Ariel Henley tem a Síndrome de Crouzon e constantemente escreve sobre os erros e acertos (mais erros na verdade) que a cultura pop comete na hora de representar pessoas com diferenças faciais, deficiências ou amputações.
A ideia de que ser linda significa ser boa e ser desfigurada significa ser má não é nova. É uma tendência muito cansativa e sem originalidade na indústria do cinema, e apenas perpetua crenças prejudiciais sobre indivíduos com diferenças faciais. (...) As pessoas com diferenças faciais são muitas vezes discriminadas por causa de nossa aparência e raramente possuem uma voz e uma representação precisa na mídia convencional.
Ariel Henley
Até mesmo na hora de escalar atores e atrizes para papéis em que o personagem possui alguma deficiência ou diferença facial, a indústria prefere usar efeitos especiais e maquiagem. Adoro a Imperatriz Furiosa, mas Charlize Theron tem os dois braços. No caso do filme Extraordinário (2017), o ator Jacob Tremblay também não possui diferenças faciais e optou-se por maquiagem e próteses.
E a indústria vai para dois extremos na hora de retratar as pessoas: ou elas são vilãs malignas ou são pessoas fofas colocadas lá apenas para inspirar com sua história de vida, ganhar a simpatia ou a pena do espectador. O que isso diz para o público em geral? Que pessoas com deficiência, amputados, com diferenças faciais são incapazes de viverem uma vida plena, cheia de significado, de relacionamentos, estudo e trabalho como qualquer um. É necessário demonstrá-las pelas pessoas que são e não usar suas diferenças como pontos do enredo para beneficiar os heróis.
Sobre maquiagens e próteses, Ariel também escreve:
Não é tanto pela escalação de Tremblay ou sua pessoa, que eu tenho problema. É o que a escalação de uma criança sem diferença facial representa. Representa cada vez que alguém com deficiência foi preterida em uma promoção, ou não foi contratada para um emprego, por conta de sua aparência. Representa cada vez alguém com menor qualificação foi escolhida ao invés de nós, apenas por nossa aparência.
Há também a questão de parecer que a indústria está fazendo um grande favor. Não é favor algum representar as pessoas pelo o que elas são e por isso é importante escalar atores e atrizes com variados graus de deficiência, com corpos que sejam diversos, pois é assim que a raça humana é. Ao mostrar apenas corpos atléticos, magros, padronizados e cujo modelo é perpetuado em revistas, brinquedos, séries de TV, jogos e filmes o tempo todo, marginalizamos ainda mais as pessoas que nestes padrões não se encaixam nem se identificam.
Fico com Shonda Rhimes, que está normalizando a televisão. E é preciso normalizar mais, pois todos somos consumidores da cultura pop e a representação ainda está falhando.
Até mais!
A existência de alguém não pode ser considerada inspiradora só porque ela é diferente.
Ariel Henley
Leia também:
Scarred Faces: Hollywood's Shortcut to VillainyStaircases in Space: Why Are Places in Science Fiction Not Wheelchair-Accessible? - io9
What “Wonder” Gets Wrong About Disfigurement and Craniofacial Disorders - Teen Vogue
Pessoas com deficiência e ficção científica
Parabéns pelo artigo!
ResponderExcluirMuitos precisam ler isso.
Ótimo texto! Não sei se posso dizer que entendo completamente mas me identifico até certo ponto. Tenho uma cicatriz de cirurgia+radioterapia do lado esquerdo do rosto além dele não ser tão simétrico por causa da cirurgia, então procuro sempre andar de cabelo solto. Tento perder essa cisma, pessoas próximas dizem q ngm vai reparar e q sou bonita e tal, mas é difícil, imagina pra quem tem algo que não tem como esconder? Enfim, ótimo texto :)
ResponderExcluirQual seria o melhor modo de superar esse trope? Ter ao mesmo tempo um herói desfigurado balancearia de alguma forma essa situação? Achei outros artigos que falam do estigma, mas nada muito concreto sobre como melhorar a situação como um todo.
ResponderExcluirOra, muito simples: tratar pessoas com deficiência, com diferenças faciais, como pessoas. Colocá-las em papéis que não tenham relação com suas diferenças. Colocá-las como interesse romântico, como chefes de equipe, como advogadas, médicas, pilotas de avião. É normalizar o entretenimento mostrando-os como pessoas e não ficar associando à vilania.
ExcluirNão sei se você gosta de faroestes, mas um filme muito bom nesse sentido é "Ambição Acima da Lei" (Posse), do Kirk Douglas. O Douglas (que também dirigiu) pôs o roteirista para escrever um papel importante para James Stacy, que havia sofrido um acidente de moto dois anos antes e perdeu um braço e uma perna. A carreira dele era dada como acabada e ele acabou se restabelecendo depois disso, em papéis adequados (acabou ganhando um Emmy mais tarde por interpretar um veterano do Vietnã — e depois como produtor. Vale a pena ver isso.
ResponderExcluir(infelizmente o Stacy depois de velho foi desmascarado como pedófilo...) :(
Mas vale muito a pena ver o Ambição Acima da Lei. Ele faz o papel de um jornalista e é relevante para a história.
Outro problema é que fica parecendo que não há outro caminho para uma pessoa desfigurada a não ser se tornar vilã.
ResponderExcluirmto bom! fico feliz que vc sempre traz leituras interessantes e necessárias <3
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