Afrofuturismo e Wakanda

Julho é o mês da celebração da luta e da resistência da mulher negra. Marcadamente, o dia 25 representa o Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha. Durante todo o mês, núcleos e coletivos articulam entre si campanhas de cultura, identidade e empoderamento dessas mulheres. São eles: Collant Sem Decote, Delirium Nerd, Ideias em Roxo, Momentum Saga, Nó de Oito, Preta, Nerd & Burning Hell, Prosa Livre, Valkírias e Séries por Elas. #WeCanNerdIt #JulhodasPretas

Afrofuturismo e Wakanda



AFROFUTURISMO
O Afrofuturismo é um movimento cujo nome é recente, mas que em si remonta já há várias décadas. O termo foi cunhado por Mark Dery, em 1993, em seu artigo "Black to the Future", e amplamente discutido ao longo da década por Alondra Nelson, prestigiada socióloga norte-americana. O Afrofuturismo compreende uma estética cultural, filosófica, histórica e científica, que combina elementos de ficção científica, ficção histórica, fantasia, realismo mágico (com cosmologias não-Ocidentais) e afrocentrismo para criticar dilemas diários da população negra, como falta de autonomia, violência policial, violência contra a mulher, solidão, falta de inclusão e de oportunidades, buscando revisar, criticar e reexaminar eventos históricos do passado, como a Diáspora Africana.

Enquanto movimento artístico, ele compreende as mais variadas mídias, indo de livros e quadrinhos, à música, arte moderna, moda, intervenções artísticas e espirituais, fotografia, cinema e grafites. Toda forma de arte é possível para o afrofuturistmo. Alguns dos máximos expoentes são (com alguns brasileiros):


Um dos primeiros trabalhos identificados inequivocamente como afrofuturista vem do escritor, historiador e ativista dos direitos civis, W. E. B. Du Bois, em seu conto "The Comet", publicado em uma coletânea com outros de seus trabalhos chamada "Darkwater, Voices from within the Veil", em 1920. No conto, um homem negro e uma mulher branca são os únicos sobreviventes de um veneno liberado pela passagem de um cometa. Os dois são forçados a enxergar um no outro um ser humano, independente de credo ou raça, se quiserem sobreviver. Bois praticamente reescreveu o mito de criação de Adão e Eva.

Ytasha Womack, em seu livro de referência "Afrofuturism: the world of black sci-fi and fantasy culture", discute muito a questão da invenção da raça depois de uma aula na faculdade em que a professora lhes pergunta o que veio primeiro: a escravidão ou o racismo. Escravidão veio primeiro, racismo depois para justificá-la, assim como a divisão da raça humana em raças ditas "biológicas" para justificar a supremacia branca sobre os demais (no termo em inglês "peoples of color"). Raça não é uma categoria biológica, mas é uma identidade social e política, que foi unificada e reforçada por meio da arte, pois politicamente as pessoas não têm acesso aos direitos básicos, segundo Womack.

A identidade negra foi e ainda é suprimida, em especial quando protagonizada por negros. Seus aspectos culturais são reproduzidos à exaustão por brancos, que ganham muito dinheiro sobre a cultura alheia. E identidade precisa de um importante reconhecimento: o de que se é um ser humano. O consenso atual estipulado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos é que todo ser humano nasce livre, com direito à vida, liberdade e segurança. No entanto, ao longo da história, foram várias as populações que tiveram seu status de indivíduo com direitos negados. Baseados em cor, etnia, gênero e orientação sexual, muitas vezes religião, a pessoa era hierarquizada segundo princípios que não foram criados por ela.

Assim, leis e estruturas sociais foram criadas com base na desumanização das pessoas. A própria constituição dos Estados Unidos estipulava que um negro era "apenas 3/5 humano", que quando tentava provar sua humanidade, era castigado, torturado, morto por isso. O indivíduo humano era protagonizado apenas pelos homens brancos. Qualquer coisa além disso era inumano. Todos os movimentos sociais que vemos brigar por seu espaço, protagonizados por negros, mulheres, comunidade LGBT, povos nativos e até classes trabalhadoras estão apenas tentando provar que são seres humanos dignos de respeito e de direitos.

Essa desumanização foi erroneamente reforçada pelas leis, violentamente aplicada, perpetuada por propaganda e estereótipos e falsamente substanciada por uma ciência imprecisa, tudo para justificar as violentas atrocidades em nome da ganância. Humanos têm usado esses métodos para desumanizar outros seres humanos. O comércio escravagista transatlântico, Jim Crow no sul dos Estados Unidos, o apartheid na África do Sul, o Holocausto na Europa, a limpeza étnica na antiga Iugoslávia e em Ruanda e o massacre de povos nativos pelo mundo tiveram como base a não humanidade do outro.

Womack, pág. 31

A ficção científica se aproxima da história da população negra nas Américas, com seu histórico brutal de escravidão, pois segundo o próprio Dary, em "Black to The Future", os negros africanos foram os primeiros seres abduzidos por aliens. Alien, em inglês é tanto extraterrestre quanto imigrante e quando brancos se aproximaram das costas da África, munidos de uma força superior e passaram a brutalizar as populações nativas, os prenderam com grilhões, enfiaram em navios insalubres e os enviaram para um novo mundo, é uma descrição exata de qualquer história de abdução e sequestro por alienígenas que a FC já retratou. Como um indivíduo não-humano, você é categorizado como exótico, selvagem, estrangeiro. Na terra do Outro, você é quem vira o alien e até é exposto em museus como um animal. E o legado dessa desumanização é sentido ainda hoje com as mortes brutais de jovens negros nas periferias, o aumento da violência contra as mulheres negras, enquanto com brancas houve um declínio e a falta de oportunidades e inclusão das populações marginalizadas, descendentes daqueles que foram sequestrados no passado.

É aí que entra a importância do Afrofuturismo. Mesmo tendo sido amplamente praticado por décadas por autores, músicos, artistas, foi com o advento das novas tecnologias que ele não apenas ganhou nome, mas também reconhecimento. É através do Twitter que muitos movimentos civis transmitem suas passeatas e denunciam atrocidades cometidas pela polícia. Com um smartphone na mão, pessoas que normalmente não teriam voz podem hoje falar, expôr ideias, arte, dialogar com pessoas que tenham interesses comuns e combater preconceito e estereótipos. Apropriar-se de ciência e tecnologia sempre foi a maneira de grupos marginalizados comporem uma resistência. Afrofuturismo e ciberfeminismo nisso possuem muito em comum.

WAKANDA
África, para muita gente, é sinônimo de pobreza, fome e miséria. Mas o continente é extremamente rico. O problema é que a riqueza não fica com ele, ela é toda exportada por companhias internacionais, de maneira legal ou não, sem reverter esse lucro em benefícios para os países de onde são retirados. Wakanda, a nação em uma África ficcional, contraria e subverte o estereótipo. Algumas pessoas encaixam Wakanda e Pantera Negra em um sub-gênero chamado de "black sci-fi", que é apenas outro nome para Afrofuturismo.

O país fictício foi criado por Stan Lee e Jack Kirby e apareceu na edição número 52 da revista Fantastic Four, em julho de 1966. Localizada no centro da África, a linhagem real da nação começou com Bashenga, rei que unificou os povos de Wakanda, sendo o primeiro Pantera Negra, por volta de dez mil anos atrás. Em algum momento distante do passado, um imenso meteorito carregado do mineral vibranium caiu em Wakanda. O mineral é cobiçado, extremamente valioso e transformou Wakanda em uma das nações mais tecnologicamente avançadas do mundo. T'Chaka, descendente de Bashenga, sabendo do desejo dos outros de manipular e dominar seu país devido ao mineral, fechou Wakanda para o mundo.

Enquanto os países da África real perdem seus recursos em guerras e nas mãos de megacorporações, Wakanda guardou para si o vibranium e escondeu do mundo seus avanços, sabendo da cobiça que isso despertaria nos outros. É a completa subversão da versão atual do continente. Wakanda é uma nação que simboliza uma África sem a exploração do ocidente e dos interesses capitalistas, onde tradição e modernidade puderam se aliar e beneficiar seu povo.

T'Challa, o Pantera Negra atual, representa um dos primeiros heróis negros da indústria norte-americana e é o chefe tribal e rei de Wakanda por direito. Sua herança tribal e religiosa não o desabonam e a nação se afasta do conceito de primitivismo e selvageria tão comumente associados à África e perpetuados na cultura pop em obras como Tarzan. O imperialismo e o colonialismo nunca estenderam suas garras sobre Wakanda. O negro é o protagonista de sua própria história, onde o afrofuturismo é exercido em sua melhor forma, com tecnologia, magia, ciência, sem traços de pobreza e doenças que estereotipam o continente.

Pantera Negra elenco

A principal influência da Marvel para a criação do Pantera Negra e Wakanda veio dos movimentos pelos direitos civis, que também inspirou a criação dos X-Men, em 1963, tudo isso bem antes de qualquer palavra surgisse para definir o afrofuturismo. Infelizmente, a cultura pop e o meio mainstream da ficção científica e fantasia dificilmente colocam os negros como protagonistas de suas próprias histórias ou mostram a África como local de inovação e avanço. Tirando Um Príncipe em Nova York (1987), a maioria das representações feitas da África é centrada em guerras e conflitos.

O filme Pantera Negra (2018) será uma celebração afrofuturista, ainda que com muito atraso e que espero seja o primeiro de muitos outros filmes e representações positivas nas telas. Pantera Negra não é só mais um personagem negro, ele é o representante de todo um movimento que não esquece a história, mas que lhe dá outro significado e importância. A últimas fotos do filme são um deleite para os olhos e os mais atentos perceberão as influências não apenas da arte africana como também de movimentos como os dos Panteras Negras. Este pode ser o primeiro blockbuster afrofuturista do cinema e precisamos muito desse longa.

T'Challa não é definido pela brutalidade policial, nem pelo crime organizado, escravidão ou subserviência. As mulheres de Wakanda são guerreiras especializadas e brutais em seu trabalho. Wakanda não está sendo vilipendiada por seus recursos enquanto a população passa fome. T'Challa tem uma guarda-costas, Nakia e as Dora Milaje, as forças especiais de Wakanda, são compostas unicamente por mulheres. Duas delas, Ayo e Aneka, são namoradas (algo infelizmente suprimido do filme). É uma nação e um povo definidos pelo orgulho, pela excelência, pelo brilhante futuro que representa e pela vanguarda na ciência e tecnologia, por mulheres guerreiras e livres. Vimos o impacto que Mulher Maravilha teve em milhares de meninas que se sentiram poderosas ao saírem do cinema. Consegue pensar no impacto que Pantera Negra terá nos jovens? São esses impactos que precisamos.

Até mais!

Saiba mais:
Afrofuturismo - AntiCast 209
O Lado Negro da Força - site
Pantera Negra, Separatismo e um olhar para utópica "Democracia da Abolição" - Preta, Nerd & Burning Hell
Afrofuturist Literature - Afrofuturism.net
Afrofuturism in Comics - San Diego State University Library
“Dear White People” e a diversidade de pele negra - Fábio Kabral no Medium
[Afrofuturismo] O futuro é negro o passado e o presente também - Fábio Kabral no Medium
Consciência do heroísmo de rosto africano – Fábio Kabral no Trendr
9 electrifying artists to add to your Afrofuturism playlist - Mashable
The Journey to Wakanda: Afrofuturism and Black Panther - Commics Alliance
Defining the Genre: 7 Novels of Afrofuturism - Barnes & Noble
Diversity in Comics: Defining Afrofuturism, Afro-Blackness and The Black Fantastic - Huffington Post
WOMACK, Ytasha L.. Afrofuturism: the world of black sci-fi and fantasy culture. Lawrence Hill Books. 2013. Chicago. 213 páginas.

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Comentários

  1. Ótimo texto (como sempre) cara Sybylla, já que tem nosso cara Kabral nas indicações, tbm indico o chégas William Mumu, que também discorreu muito bem sobre o tema em seu Medium :)

    https://medium.com/@willmumusilva/afrofuturismo-a-di%C3%A1spora-intergal%C3%A1tica-604028e8ce7a

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  2. Nossa ... O.O ...recebi por uma amiga a sugestão de ler este artigo. Fiquei impressionado com sua forma muito gostosa de escrever e amei cada palavra. Digo isso porque dificilmente leio qualquer coisa com mais de 3 linhas... S2 parabéns e obrigado.

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    1. Eu que agradeço e fico muito feliz que você tenha gostado do texto! Volte mais vezes. ♡

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  3. Mais um daqueles seus textos que fazem pensar de forma leve e desafiadora.
    Obrigado Capitã.

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  4. Parabéns, Seu artigo é ótimo, interessante e leve. Gostaria de ter lido antes!

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