O estupro telepático

Uma violação mental seria tão ruim quanto uma violação física. É isso o que a ficção científica nos mostra em vários enredos e é uma boa comparação, já que ao se ler a mente de alguém sem consentimento, o telepata está violando sua privacidade e sua consciência. Foi a maneira que a FC encontrou de tratar de invasão, violência e consentimento sem precisar chocar a audiência com cenas de estupro. O que não quer dizer que eles saibam lidar com assunto ainda.




Muitas franquias de ficção científica se utilizam de telepatia em seus enredos. Alguns explicam cientificamente esse poder extrassensorial, como sendo um traço genético recessivo. O editor da Astounding Science-Fiction, John W. Campbell Jr., era um grande entusiasta da telepatia e dos superpoderes e publicou diversos contos na revista em uma época conhecida como "psiboom", que também coincidiu com a Guerra Fria, levando para as páginas da ficção científica o medo de ter seus mais profundos segredos revelados por um telepata.

Em Babylon 5, por exemplo, os telepatas são uma minoria perseguida e a Psi Corp. é a corporação responsável por identificar, educar e empregar telepatas, que são úteis em negociações comerciais, por exemplo, para impedir que um lado engane o outro. No entanto, como a série nos mostra, telepatas possuem uma série de regras e restrições, como a de não sondar as mentes das pessoas sem autorização. Uma leitura forçada causa diversos problemas, em especial naquele que está sofrendo a leitura como elevação da pressão arterial e até AVCs.

Star Trek é onde temos muitos casos bizarros de estupros mentais e um certo desdém na forma como eles foram tratados, a começar pela Conselheira Troi, a eye candy da Nova Geração. A atriz já comentou várias vezes sobre o absurdo espartilho e o sutiã que precisava usar embaixo dos vestidos e macacões da série, como os produtores ficaram surpresos por ela ter ficado "tão bem de uniforme" e de como ela se sentia uma samambaia no meio da ponte. Os ataques contra a mente de Troi são constantes quando eles encontram espécies com um desenvolvimento mental muito superior ao humano. E ela uma vez passou por uma gestação não consentida quando um alien achou que seria divertido nascer, crescer e morrer como um ser humano, "tudo em nome do aprendizado". O fato de toda a tripulação discutir o assunto na frente dela, sem nenhuma preocupação por sua privacidade e ter que explicar para a audiência que nem ela sabe o que aconteceu também é chocante.

No episódio “Violations”, da quinta temporada de A Nova Geração, a nave é visitada pelos Ullians, alienígenas com habilidades mentais únicas, que investigam as memórias das pessoas de forma a colecionar esses momentos. Troi está em seu quarto quando uma memória sensual de um encontro seu com o comandante Riker aparece em sua mente e logo a memória se transforma em sofrimento, pois Riker força a conselheira a transar com ele. Ela reluta, pois a memória vem sendo manipulada por um dos Ullians, e ela entra em coma. Outras pessoas pela nave sofrem com a invasão quando começam a suspeitar sobre o verdadeiro culpado, mas apenas no caso de Troi ela tem um cunho sexual. E o pior nem é isso, é Picard dizer que a Federação não tem como lidar com um crime desses e que apenas os Ullians podem punir o agressor. A cena nem precisava ter cunho sexual para começo de conversa!

Conselheira Troi, arte de Dave Daring

O abuso contra ela não para aí. No filme Star Trek Nêmesis, o vilão invade a mente de Troi, se usando da imagem do comandante Riker e a estupra, ainda que em sua mente, o que não deixa de ser uma violação, pois telepatas podem colocar imagens e memórias vívidas na mente da pessoa. E aí temos uma cena abominável em que Troi está na enfermaria e pede para ser deixada de fora da missão, pois sente que não tem condições para isso, podendo ser um risco à nave. Ela foi violentada, mas sua preocupação é com a nave. OK. Mas então o capitão Picard diz que não, que ela vai ter que ficar e mais para frente ele ainda a ordena a se comunicar com o telepata mais uma vez para poder revelar a posição de sua nave. Hein?? Para um futuro supostamente igualitário e progressista, a forma como os roteiristas trataram a personagem foi atroz.

Outro caso específico é a da subcomandante T'Pol, oficial de ciências da Enterprise NX-01. Ela passa por um elo mental com outro vulcano, Tolaris, no episódio "Fusion", mas pede para que ele pare com o procedimento. Ele não apenas não para como lhe passa uma doença degenerativa, a Síndrome de Pa'nar. Como toda vulcana, T'Pol racionaliza a situação depois que descobre sobre a doença e diz que o fato de ter sido infectada de maneira forçada era irrelevante, que ela não queria estigmatizar a minoria vulcana que fazia elos mentais e que não era culpada pela forma de agir de Tolaris. Capitão Archer depois discursa sobre diversidade e de como a humanidade aprendeu a abraçar e a querer a diversidade, mas nada fala sobre o estupro que ela sofreu.

Estupro é mencionado em Star Trek várias vezes, em invasões e pessoas tomadas por entidades psíquicas, ou seja, fora de si. Mas ele arranha na questão, tratando sempre de forma superficial, muitas vezes errada. O estuprador não é um louco, escondido em um beco, espreitando, nem o cara legal dominado por uma entidade alienígena. A maioria dos estupros é cometida por pessoas próximas, geralmente parentes. Babylon 5 ao menos tinha leis para lidar com coisas do tipo. Star Trek não. O que é mais perturbador nesses estupros telepáticos é que eles são tratados apenas como violações menores. Se não houve o contato físico, é como se fosse apenas um crime de menor gravidade. Se as sociedades do futuro têm problemas de lidar com crimes mentais, é apenas uma forma de ilustrar a dificuldade da sociedade atual de lidar com o estupro aqui. Mulheres são constantemente questionadas a respeito das violências que sofrem, como se fosse tudo uma invenção, ou um crime menor. Quando comparam com roubo de celular é porque a empatia das pessoas é zero mesmo.

Se um telepata colocar na mente de alguém uma cena completa de estupro, a pessoa continuará sendo uma vítima pelo trauma sofrido e porque na sua mente a violação é real. Não entendo como podem separar as duas coisas e como puderam descartar chances tão boas de falar a respeito de estupro na ficção científica. O tratamento dado à personagem de Troi, por exemplo, é uma forma de ilustrar para os mais desatentos como as vítimas são tratadas e ainda precisam trabalhar como se nada tivesse acontecido. É incrível que a conselheira Troi não tenha largado a carreira e sofrido um colapso mental com tantas agressões.

Até mais.

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Comentários

  1. Sybylla, conhece Steven Universe? A Rebecca Sugar aborda esse tema de maneira genial.

    Na história tem uma ótima metáfora: Fusões. Fica educativo/pedagógico pra pessoas de qualquer idade. Não é chocante e fala sobre relacionamentos, sexo, monogamia, consentimento, relações abusivas e até estupro.

    Explicação com spoilers:
    https://medium.com/@alinevalek/o-que-n%C3%A3o-quiseram-me-contar-sobre-steven-universe-c906fc209cc5

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