A desumanização dos Cylons

Os Cylons (Cybernetic Lifeform Node) foram criados pela humanidade para serem trabalhadores e operários (estou me atendo aqui à versão de 2004, não à série de 1978). Criados para substituir os seres humanos, eles acabaram se revoltando contra a escravidão a qual estavam submetidos e uma longa guerra se estabeleceu com os humanos, levando a um armistício. Por 40 anos, ninguém ouviu falar sobre os Cylons, até que eles voltaram para casa, dizimaram seus criadores e começaram a caçar os sobreviventes. Desumanos. Violentos. Psicopatas. Toasters.

Pera lá, que a história não é bem assim.

A desumanização dos Cylons

Cáprica 6 fala que "os filhos da humanidade estavam voltando para casa", quando revela sua missão para Gaius Baltar. Os Cylons se consideravam filhos traídos da raça humana, que os criou, depois os escravizou e entraram em guerra, não lhes dando o devido reconhecimento como formas de vida, como raça. Temos uma história bem parecida com a de Lúcifer, de Adão, de Caim, que se rebelaram e desobedeceram seu criador.

Como máquinas conscientes, os Cylons sentem que não são tratados com humanidade. Eles foram desprovidos dela, por serem máquinas, por serem meras ferramentas para fazer o trabalho sujo dos humanos. Uma pessoa cujos interesses sejam continuamente sacrificados em benefício dos outros está em uma situação de servidão. E quem vive nessas condições está desprovido de direitos que o reconheçam como alguém que precise deles.

Desumanizados, os Cylons podem ser usados de qualquer forma. A Almirante Caine não viu problemas em colocar uma cylon modelo 6 infiltrada sob tortura, sendo continuamente brutalizada e estuprada por todos os guardas do Battlestar Pegasus. Se não é humano, não tem direitos, certo? E no que isso é diferente do que acontece com as mulheres estupradas, brutalizadas e mortas, não só no Brasil, mas ao redor do mundo?

Aí você pode argumentar: mas cylons não são pessoas! Para que um robô pense desta forma, ele precisa de consciência, e se ele tem consciência de sua situação, pode se revoltar com ela. E pode também ser considerado uma pessoa. Vamos então definir o que é uma pessoa, pois isso mudou muito ao longo da história humana.

Uma pessoa é aquela que tem a capacidade de ser racional e inteligente, que possua desejos, emoções, consciência de si e crenças, que use linguagem de alguma forma, que se relacione com outras pessoas e que seja moralmente responsável por suas ações como um ser autônomo e livre. Não importa se essa pessoa é um cylon, um ser humano, um vulcano, essa pessoa, indivíduo, deve ser protegido. Esse conceito muda ao longo da história de acordo com quem está no poder.

Podemos ver que nem todos os seres humanos são considerados pessoas pela forma como negros, mulheres, gays, trans*, travestis, são tratados todos os dias. Desta forma os cylons podem servir de alegoria para que possamos pensar na forma como as minorias em direitos são tratadas diariamente. Assim como os X-Men também deveria nos fazer pensar, mas tem muita gente por aí que não quer que suas peças de entretenimento exerçam esse poder.

A presidente Roslin não tem remorso em tentar colocar Sharon Valerii na câmara pressurizada e jogá-la no espaço. As pessoas das 12 Colônias enxergam os cylons como as criaturas robóticas assassinas que quase os extinguiram, mas e quando surgem os modelos humanos? Nem mesmo assim alguns tiveram empatia, nem quando alguns cylons viram que extinguir a raça humana não era o correto a fazer e se juntaram a eles.

Aí alguém pode perguntar: pra que analisar isso, é só uma ficção científica! Não, não é só uma ficção científica. Ao longo do tempo nós vimos o quanto a ficção científica acaba se tornando fato. George Orwell, em 1984, nos falou de um governo que vigiava cada passo nosso. Person of Interest modernizou o conceito e nos fala de uma máquina dilapidada e posta sob controle para poder investigar aqueles casos que são apenas de interesse da segurança nacional, para não violar a privacidade das pessoas. O comunicador da Enterprise se materializou em nossas mãos, onde você estar lendo este texto agorinha mesmo.

Quanto uma obra de ficção se dispõe a falar da reação de povos originalmente oprimidos, como no caso dos cylons, quando fala de escravidão, ausência de direitos, a busca por uma coexistência pacífica entre povos originalmente beligerantes, ela está nos mostrando o mundo pelo o que ele é hoje e tem sido ao longo do tempo. Hoje nós temos a Carta de Direitos Humanos, mas 1000 anos atrás não. E ainda assim temos barbáries e desumanizações sendo notícias todos os dias. Os cylons exageraram em sua busca por vingança, o que quase levou ao fim de todos, caso não cooperassem. Não é algo para se pensar na nossa realidade?

Se reconhecêssemos cada pessoa como tal, que merece respeito, dignidade e que seus direitos sejam respeitados, as guerras não aconteceriam mais. Nós não teríamos a Diáspora Negra e a escravização de milhões de seres humanos vindos da África. Não teríamos visto judeus caminhando rumo à morte certa em câmaras de gás. Quando você desumaniza uma pessoa, ela fica suscetível a qualquer tipo de abuso, pois seus direitos também caem. E aí uma pessoa que não enxerga gays como pessoas entra armada numa boate e abre fogo contra elas...

Diferente dos T-800, os cylons não foram feitos para exterminar a raça humana. Acusá-los de serem assassinos por natureza não procede. A discussão sobre a consciência de robôs e máquinas, inteligências artificiais e até onde elas devem ir tem sido muito pertinente neste momento com todos os casos de drones, bots (como a Tay, da Microsoft), a Siri, a Cortana, Google Now. Hans Moravez alega que em 2050, robôs e inteligências artificiais superarão a nossa capacidade intelectual e se desenvolverem consciência, é bem capaz que queiram direitos, como uma pessoa qualquer. E aí?

Fica a questão para você pensar. Até mais!

Leia mais:
The humans rights of the cylons
The cylons are back and humanity it's in deep trouble

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