Pessoas com deficiência e ficção científica

Todo mundo que lê o blog sabe que eu considero a ficção científica um gênero literário completo e de infinitas possibilidades. É uma pena ver que tem muito escritorzinho por aí que acha que o mundo é para apenas homens brancos heteros e cisgêneros, como se o restante da humanidade não fosse composta por outros seres humanos e reclama de quem pede maior representatividade no cenário nacional. Seres humanos vêm em várias cores, formas e possibilidades. É aqui que a ficção científica entra para mostrar todas elas.

Primeiro de tudo, por que "pessoas com deficiência" e não "pessoas com necessidades especiais" ou "portadora de necessidades especiais"? Foi no Twitter que, gentilmente, definiram e me explicaram o modo correto:

Dizemos ❝pessoa com deficiência❞, e não portador de necessidades especiais, por 2 motivos:
1, ❝portador❞ é terminologia médica, e o que temos não é doença, mas uma condição biológica;
2, não temos necessidades especiais, precisamos de água, comida, sono, remédios e um pouco de amor às vezes ;);
"Pessoa com deficiência" é mais correto porque, efetivamente, explica o que a pessoa realmente é.

Ou seja, se antes você falava errado, assim como eu, por desconhecimento ou por ignorância mesmo, fica aí a dica. Mas e aí, as pessoas com deficiência têm espaço na ficção científica? E como tem!

Começando por Star Trek, a série que mais se preocupou em mostrar pessoas com deficiência como pessoas ativas na sociedade, lembrei de cara de três personagens: Geordi LaForge, Riva e Melora Pazlar. Geordi é cego. Porém, com seu visor especial, ele era um membro importantíssimo da Enterprise devido aos comprimentos de onda que o equipamento era capaz de distinguir, algo muito além do olho humano comum. Com a tecnologia se refinando, ele acabou ganhando olhos biônicos muito avançados e mais confortáveis que o visor.

Geordi LaForge e o embaixador Riva. Star Trek, A Nova Geração.

Riva também é um personagem fascinante. Ele é um importante mediador de conflitos e é chamado para tentar criar um tratado de paz entre dois povos que estão à beira da extinção se não chegarem a um acordo. Riva não tem receptores auditivos no cérebro, portanto nenhum implante funcionaria com ele. A solução: ele tinha um coro, com três sensitivos, que traduziam as palavras dele, cada um ligado a uma determinada área do cérebro. Um para a razão, outro para a libido, ou para a temperança.

Mas um atentado mata o coro especial de Riva e a tripulação da Enterprise se vê impotente, buscando maneiras de se comunicar com ele. É justamente a surdez de Riva que servirá de alicerce para o acordo de paz, pois enquanto os povos aprendem a conversar com ele, aprenderão a conversar um com o outro. Genial!

Uma personagem fascinante de Deep Space 9 é Melora Pazlar. Nativa de um planeta cuja gravidade é menor do que a padrão das outras espécies, ela é a primeira a sair de Elaysa na esperança de inspirar outros a explorar o espaço. Melora sofre com várias limitações para se locomover pela estação DS9. As passagens não foram feitas para a passagem de sua cadeira. Ela precisa usar um aparato especial para não penalizar seus músculos e assim ajudá-la a se locomover e exige ser tratada da mesma maneira que outros membros da Frota Estelar. Fico pensando em quantas pessoas não se identificaram com ela quando sua cadeira não conseguiu passar por um determinado corredor e ela foi ao chão.

Melora Pazlar, Deep Space 9.

Muitas vezes, olhamos para personagens com deficiência e nem nos ligamos que eles as possuem. Ao olhar para John Vriess de Alien 4, logo notamos que ele está em uma cadeira de rodas (tunada e cheia de armas), mas e quanto ao braço mecânico de Luke Skywalker? Ele sofre uma amputação por um sabre de luz e recebe um braço biônico super avançado. Nem nos damos conta que ele precisa daquele braço. Mas ele é uma pessoa com deficiência e um grande herói de Star Wars. E seu pai, Darth Vader? Todo ele foi reconstruído, assim como o Robocop, com o auxílio da tecnologia e praticamente se tornaram armas ambulantes.

Peeta Mellark, nos livros de Jogos Vorazes, tem uma perna mecânica depois do ferimento que ele recebe nos jogos. Os filmes optaram por deixar isso oculto, mas até mesmo Katniss recebe um implante auditivo. A cena de Julie Gelineau, de Extant, colocando suas pernas biônicas depois do banho me impressionou, pois as próteses são extremamente reais.

Julie Gelineau coloca suas pernas biônicas. Extant. 

O Soldado Invernal, da Marvel, sofreu uma amputação em um acidente de avião. Em uma missão para capturar o Capitão América, uma tropa russa acabou encontrando Buchy preservado no gelo. Ele, então, foi colocado em estase e depois reanimado em 1954, onde lhe foi implantado um braço biônico fodão, adaptado e trocado ao longo do tempo por próteses mais modernas. E quem assistiu a adaptação para o cinema de Eu, Robô deve lembrar que o detetive Spooner tinha uma prótese bem parecida com a de Bucky.

Detetive Spooner reaplica pele artificial em seu braço. Soldado Invernal, da Marvel.

E o que podemos dizer do querido professor Xavier? Um super herói poderoso de cadeira de rodas e líder dos X-Men? De Bárbara Gordon, em Batman? De Kent, cientista do filme Contato, que era cego? A Ameaça Invisível, segundo livro da Trilogia Anômalos, de Bárbara Morais, também tem um personagem cego. Temos O Demolidor combatendo o crime, temos o homem de 6 milhões de dólares e a mulher biônica, temos N personagens do mundo da ficção científica e dos quadrinhos, animes, séries de TV, mostrando as infinitas possibilidades que as pessoas com deficiência podem ter e como elas são produtivas.

Então, por que o mundo real ainda não aprendeu com a ficção? Por que eles continuam sendo vistos como menos capazes por andarem de cadeiras de rodas ou por serem surdas? Para quem já está muito bem representado na ficção, que já possui seus heróis preferidos, esse papo de representatividade é um saco. Cada vez que publico um post por aqui sobre a importância da representatividade, sempre aparece um para chorar, dizendo que a gente, ou "esse povo" ficam chorando de barriga cheia, que é "vitimismo". Bem, acho que vitimismo é ir chorar num post sobre representatividade e não pedir por mais dela. Você, que já está bem representado, não será prejudicado em nada.

Quantas pessoas fãs de quadrinhos não se sentiram representadas por Bárbara Gordon ou pelo Professor Xavier em suas cadeiras de rodas, combatendo o mal? Quantos não desejam a tecnologia de Extant que faz com que Julie, uma amputada, prossiga sua vida e produza como todo mundo? É, isso é de tamanha importância que nem deveríamos ter que pedir por maior representatividade, mas isso ainda é necessário, ainda é preciso ir à televisão mostrar o descaso do poder público com um posto de saúde que não tem rampas para facilitar o acesso dos pacientes.

Antes de fazer minha cirurgia de coluna, precisei andar de cadeira de rodas toda vez que saía de casa. Foi por um curto período, para um problema que não era permanente, mas que me deu a perspectiva de quem vive desta maneira. As pessoas são desumanizadas apenas porque têm uma limitação ou deficiência, quando a ficção científica tem mostrado que elas podem muito bem viver integradas à sociedade utilizando-se da tecnologia. Quantas vezes alguém parou para pensar que Luke Skywalker é um "aleijado"? Nunca, certo? Então por que tem quem faça isso na vida real?

Representatividade importa e importa muito. Ela empondera, ela educa e mostra as infinitas possibilidades de convivência, de soluções de problemas, de tecnologia e genialidade. Isso nunca deveria ficar de fora dos enredos porque mais-do-mesmo a gente tem de sobra.

Até mais!

Super obrigada à galera do Twitter que tanto contribuiu e ainda contribui com este post!

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