Em geral, os fãs de ficção científica não têm muito apelo para o misticismo. Discussões religiosas nas obras são encaradas com alguns narizes torcidos ou então ajudam a desqualificar vários enredos e seus autores, como se o mistério não fizesse parte da vida e a ciência fosse capaz de explicar tudo. Mas várias franquias e vários autores já usaram estes artifícios, sem perder nada em qualidade e originalidade.
O misticismo, o mistério, são coisas que costumam aparecer em diversos enredos. Na ficção científica, nem sempre ele é predominante, pois muita gente pode estranhar o fato de haver uma carga tão grande de eventos mal explicados em um livro ou série. Ficção científica depende basicamente de ciência, tecnologia, as interações entre seres humanos a estas características. Por isso fica a pergunta: existe espaço para o inexplicável?
Não só existe como apareceu constantemente em Arquivo X, em Battlestar Galactica, em Encontro com Rama, em Star Trek, em Star Wars. E isso não diminuiu a qualidade das mesmas. Vale lembrar que falar de um evento misterioso, místico, não necessariamente é deixá-lo sem nenhuma explicação. Não sabemos como que os alienígenas construíram a máquina de Contato, nem como usaram as memórias da Dra. Arroway. É um evento inexplicado, místico se compararmos com a fala do ex-padre e paquera de Arroway, mas que sabemos envolver alguma ciência fora do alcance do nosso conhecimento técnico. Arthur C. Clarke já falou disso há muito tempo.
Star Trek O Filme também possui eventos nesta pegada. Temos a transformação do corpo para um novo estágio de evolução com a união do capitão Deker com Ilia e V'Ger, uma máquina criada pelos humanos, mas que teve sua programação original melhorada. Temos Dana Scully, em Arquivo X, tendo encontros e experiências transcendentais, em especial após sua abdução e em várias vezes em que ela tem encontro com demônios e anjos. É em Arquivo X que também temos eventos com monstros, aliens, criaturas de outras dimensões, gênios, vampiros, com uma mitologia rica e oriunda de diversas civilizações.
O que dizer dos eventos extraordinários de Battlestar Galactica, com Starbuck, Caprica 6 e Baltar? O mais interessante é notar que até mesmo a ressurreição foi tratada de maneira fantástica ao ser transformada em um simples download para um novo corpo. Como se ele fosse um pendrive e a gente colocasse arquivos novos ali. Vemos como a presidente Laura Roslyn se ergue como a Líder, de acordo com o que está escrito no Livro de Pítia e guia os sobreviventes humanos, seguindo as pistas descritas nas escrituras. Se antes a ficção científica se prestava a ser fria e tentar ao máximo descrever tecnologias e toda a ciência envolvida, ela tem evoluído para um momento onde o inexplicável começa a se tornar explicável, ao menos com a ciência fictícia dos enredos de FC mais recentes.
Star Wars trabalha com o conceito da Força. Mesmo que a explicação sobre os midiclorians não tenha agradado à muita gente, ele deu uma saída científica para uma força misteriosa. Obi-Wan Kenobi assim explica:
[A Força] nos cerca e nos preenche. Ela mantém a galáxia unida. Use a Força, Luke.
A aura de mistério permanece mesmo com a presença dos midiclorians, afinal como eles podem produzir tal força capaz de manter uma galáxia inteira unida? Me fiz a mesma pergunta ao assistir o filme Os Esquecidos. O alienígena diz para a personagem de Julianne Moore que ele quer entender a ligação que existe entre mãe e filho. Ele inclusive consegue medi-la. Como? O que ele usa para medir? Que equipamento seria capaz de medir o amor que existe numa ligação entre mãe e filho?
Uma parte da mística de Star Wars é a questão do bem e do mal. George Lucas nos mostrou que o mal é parte de nós mesmos, mas a maneira como lidamos com ele é que vai definir quem somos. Anakin foi consumido pela raiva e utilizou a Força para o mal. Muita gente desconsidera Star Wars como sendo uma ficção científica. Eu o vejo como uma fantasia espacial, com elementos característicos de uma ficção científica, mas sem dúvida o seu lado místico é o que mais inspira os milhões de fãs da saga. Quem nunca disse "Que a Força esteja com você"?
Philip K. Dick conseguiu trazer o paranormal e a percepção extra-sensorial para o mundo real ao utilizar os Precogs em Minority Report. A neuroína fez algo no cérebro das crianças que nasciam viciadas e algumas começaram a acordar aos gritos de madrugada, vendo imagens de assassinatos que ainda não tinham acontecido. Rapidamente perceberam que aqueles jovens tinham a capacidade de prever homicídios. Por que não usá-los como o pilar de uma política de segurança pública e assim acabar com as mortes de inocentes? Mas como prender alguém por um crime que ela não cometeu? Ela cometeria e seria presa por isso, mas será que o sistema é tão preciso?
Esta é uma das melhoras obras que mostram como o místico e o sobrenatural podem se misturar com eficiência na FC. Mesmo que essa ciência seja fictícia, mas ela é baseada em ciência, baseada em processos e em tecnologias. Este é um casamento que dá certo. Vemos que a ficção científica tem utilizado a mística, o sobrenatural, o misticismo e a espiritualidade de formas bastante originais e usadas em um contexto onde elas possam se encaixar no método científico e possam também ser encaradas como algo plausível. O principal ponto em uma FC é que sua ciência, sua tecnologia, sejam PLAUSÍVEIS.
Ágata, a precog mais forte dos três. Minority Report. |
O que é importante é manter a FC viva e produzindo enredos instigantes. Temos exemplos ótimos de como estes eventos se encaixam com a ciência e como podemos nos deslumbrar com eventos místicos, sobrenaturais ou sem explicação.
Até mais!
Agradeço ao Beto Silva e ao Fernando Borges pelas ideias e pela discussão!
Bela reflexão.Adoro suas matérias com esse tipo de abordagem, os limites da ficção científica por vezes esbarra na fantasia, no místico, no sobrenatural...
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