Escrevinhiduras

Escrevinhiduras

“-Olá!

-Olá, boa tarde, posso ajudá-la?

- Vim me matricular na Faculdade de Escrevinhiduras.

- Ah, sim, é aqui mesmo. Sua grade é dividida em duas partes. A primeira, generalista, dura vinte anos, vem com os conteúdos básicos de qualquer escritor. Ela é bem ampla, tendo disciplinas como Língua Portuguesa, Redação, Gramática, História do Idioma, Psicologia da População, Análise do Discurso, Política I e II, Geografia, História Geral, Filosofia, Sociologia, Matemática, História dos Conflitos Humanos, Análise dos Corações Solitários, Fisiologia Humana I e II, Mecânica, Inglês, Francês, Culinária e mais uma grade com 700 disciplinas optativas pra você completar a grade.

- Entendi… Uau, é bastante coisa pra estudar. Achei que a parte generalista levaria só uns dez anos.

- Bem, não queremos que escritores saiam de nossa faculdade sem uma boa base, afinal estamos falando de seres humanos que precisam ser representados, que precisam estar bem escritos e sabemos que é sempre uma tarefa difícil.

- Claro, eu entendo. E a segunda parte do curso?

- Aí você escolhe se quer se especializar em um gênero literário só ou se quer escrever de tudo um pouco. Por exemplo, se você quiser escrever Fantasia Medieval, terá mais disciplinas de história, como História Medieval, História da Europa. Se quiser falar de dragões, então entra História do Misticismo Chinês. Se quiser falar de elfos e duendes, aí entram História Celta, Viking, Germânica e por aí vai. Já na ficção científica temos Física Básica, Astronomia, Mecânica Quântica, Mecânica Aeroespacial, Geologia, Geomorfologia, Tecnologia Aeroespacial, Conceitos e Bases em Ficção Científica, Análise dos Clássicos, e por aí vai.

- E quanto dura a segunda parte do curso?

- Bem, depende da sua dedicação. Tem gente que nunca termina, sabe? Por isso tão pouca gente persiste, o curso é muito longo, algumas pessoas querem logo ir pro mercado pra ganhar dinheiro. Ahh, e se você decidir seguir carreira autônoma, terá uma especialização pela frente. Terá Diagramação e Princípios Básicos de Editoração, Mercado de Autopublicações, Plataforma de publicação, Revisão de Textos, Leitura Crítica, Monetização, Design de plataforma…

- Ao todo, de quantos anos estamos falando aqui?

- Não sei. Vai depender do aluno. Mas o tempo costuma ser longo demais, algumas pessoas desistem. Vou ser sincera, nem todo mundo terá retorno. Nem todo mundo tem talento, apesar de saber escrever, nem todo mundo ganhará rios de dinheiro. Em geral, os textos ficarão restritos a cartas, blogs, sites e livros de baixa circulação. Mas aí você tem que ver que tipo de vida quer levar. Quer escrever por que gosta, ou quer escrever por que quer ganhar dinheiro? Qualquer profissão, se a escolha for a segunda, será a errada. Claro, precisamos de dinheiro pra pagar as contas, não dá pra ignorar que podemos e devemos ganhar dinheiro, mas ele deve ser um meio, nunca um fim. E tem gente que não entende.

- Escrever é a minha paixão, é algo que torna a vida suportável. Não sei se sei fazer outra coisa…

- Então aí está seu motivo pra escrever. É só disso que você precisa. E espero que ganhar dinheiro acabe acontecendo também. Nossas turmas começam quando o aluno se sente preparado pra começar. E o diploma, bem, ele não existe.

- Como assim não existe?

- Quando você se sentir preparada pra se jogar de vez no mundo da escrita, aí está seu diploma. O diploma é uma formalidade técnica, ele não torna ninguém inteligente de verdade. E então, vamos fazer a matrícula?

- Claro!"


Sempre tive medo de falar que escrevo ou que gostaria de ser escritora, porque as pessoas desdenhavam de mim. A maioria dava risada. Poucas pessoas me estimularam em seguir fazendo isso. Minha mãe uma vez me disse que eu deveria estudar, porque ficar escrevendo não me levaria a nada (ela me pediu perdão décadas depois). Na escola, minhas aulas preferidas eram de redação, era aquele momento em que eu podia esquecer das tristezas.

Uma vez, um colega me perguntou que faculdade eu gostaria de fazer. E disse que era Medicina (na época eu não sabia que esse curso é pra quem pode, não pra quem quer). E ele falou: ué, achei que você queria fazer Letras, pra ser escritora.

Isso nunca saiu da minha cabeça. O que forma um escritor? É a faculdade? É a vida? É a vontade, o talento, a técnica? É a editora? São os agentes literários? É a cara e a coragem de deixar as pessoas lerem o que você escreve?

Às vezes me perguntam se eu tenho dicas de escrita pra iniciantes. E entro em pânico! “Pra quem você veio pedir isso?? Peça pra alguém que saiba o que está fazendo, eu não sei!”. E mesmo que eu venha tentando mudar isso, ainda é difícil falar a respeito. Gostaria de me profissionalizar mais, de fazer oficinas, aprender com outros escritores, mas não tenho dinheiro. Me resigno a ler bastante pra analisar o que os outros fazem e ver o que posso estar fazendo de errado.

Hemingway dizia que para escrever não há nada a se fazer, além de sentar em frente à máquina de escrever e sangrar. Acho que ele abordou apenas uma parte do ato da escrita. Quando é necessário, a gente sangra sim. Quando é necessário sorrir, a gente vai sorrir. Quando é necessário gritar, morrer, matar, nascer, amar, transar, falar e pensar, inventar, corrigir e criar, a gente vai fazer isso. O papel — ou a página do Word — nos aceita pelo o que somos e muitas vezes é difícil aceitar isso. É difícil aceitar que nossa escrita nos desnuda completamente para o leitor e ficar vulnerável desta forma é algo que nem todo mundo está pronto pra enfrentar.

A escrita dá paz. Mas também dá muita dor de cabeça. A escrita pode não ser levada a sério, quando deveria ser. Pode ser compreendida errado por falta de interpretação de texto, ou pelo excesso dela. Precisamos da escrita, mesmo que você não seja escritor, afinal a leitura é uma competência de linguagem. Mas para quem escreve é água. É comida. É o ar que se respira.

A formação do escritor é como disse Cora Coralina ao falar da sabedoria: se aprende com os humildes. É preciso humildade pra escrever, pois estamos falando de outros, na forma de personagens, falando de suas vidas. Estamos falando de assuntos espinhosos, acionando gatilhos muitas vezes que podem machucar demais. Falando de paixões que inspiram, de situações que incomodam. A formação do escritor é contínua, ela nunca para. Não é o diploma universitário que lhe dá a competência pra escrever. Não é o domínio completo do idioma que forma o escritor. Não é a técnica. É a chama que consome as ideias a ponto de vazar pelos dedos e preencher laudas, páginas, ebooks, livros e enciclopédias. Nunca tem fim. Nunca acaba. Nem acabará.

Até mais!

Uma casa sem livros é como um corpo sem alma.

Cícero (106 a.C. - 43 a.C)

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