Sexismo, machismo e ficção científica

Machismo e sexismo na ficção científica são temas tratados à exaustão. O material consumido é produzido quase que, exclusivamente, por homens cisgêneros e heterossexuais, para também homens cisgêneros e heterossexuais e o que existe fora do "padrão" é considerado de nicho. São poucos os exemplares de uma FC que não retrate o profundo machismo e sexismo da nossa sociedade que acaba sendo reproduzido na mídia e nas artes.




Mas antes de tudo, o que é sexismo?

(...) é um termo que se refere ao conjunto de ações e ideias que privilegiam entes de determinado gênero (ou, por extensão, que privilegiam determinada orientação sexual) em detrimento dos entes de outro gênero (ou orientação sexual). Embora seja constantemente usado como sinônimo de machismo é na verdade um hiperônimo deste, já que é possível identificar diversas posturas e ideias sexistas (muitas delas bastante disseminadas) que privilegiam um gênero em detrimento a outro.

Ou seja, sexismo pode vir de ambos os gêneros segundo essa definição. Exemplos de expressões sexistas, batidas, falsas e completamente idiotas:

  • É dever natural do homem o sustento da família
  • As mulheres são mais frágeis
  • Homem não chora
  • Mulher que gosta de sexo é puta
  • Os homens não prestam
  • Trair é da natureza masculina

Já a definição de machismo:

Machismo é o comportamento, expresso por opiniões e atitudes, de um indivíduo que recusa a igualdade de direitos e deveres entre os gêneros sexuais, favorecendo e enaltecendo o sexo masculino sobre o feminino. O machista é o indivíduo que exerce o machismo.

Eu costumava participar de grupos de ficção científica, dentro e fora do Facebook, e era praticamente constante encontrar fotos sensuais de cosplayers femininas em roupas mínimas e coladas, em posições sensuais. Já discussões mesmo... E muitas vezes fui silenciada ao tentar fomentar debates. Muitas personagens do universo da ficção especulativa são erotizadas e hipersexualizadas. Nada contra corpos sexualizados, seja feminino ou masculino, desde que esta não seja a única função de seus corpos, afinal o sexo faz parte da natureza humana. No entanto, vemos que a grande maioria da sexualização é dirigida para personagens femininas. A maior parte do sexismo do gênero na ficção científica é dirigido às mulheres, quase sempre secundárias nos enredos, ou até mesmo mortas, violentadas e agredidas em detrimento dos heróis.

Um exemplo básico de sexismo. 

Como a maioria dos autores é de homens brancos cisgênereos e heterossexuais, personagens, negros, gays e transexuais praticamente não existem em seus enredos (e muitas vezes, se existem, são o alívio cômico, sem nenhum passado) e as mulheres são em geral relegadas aos mesmos papéis repetidos: sexy babe, médica, refugiada, cientista ou a mocinha que precisa ser salva. Os homens são machões, que não se machucam, que não choram, conquistam a galáxia antes do café da manhã e beijam a mocinha no final. Se a maioria dos autores são homens brancos e heteros seus personagens, na maioria, também são.

Sexismo também pode ser reproduzido por mulheres. C.J. Cherryh, em seu livro Tripoint, fala de Thomas, um rapaz que é criado em um cargueiro espacial e que não convive bem com sua mãe, pois ele é fruto de um estupro. E como isso aconteceu? Sua mãe concordou em sair com um rapaz, pois queria perder a virgindade. Só que ela mudou de ideia, não quis mais e foi violentada. Ela se culpa pelo o que aconteceu e pretende se vingar do pai. O que Thomas faz: se une ao pai e estuprador de sua mãe contra ela. A mãe desiste da vingança e de quebra ganha a antipatia de todo o clã. Ou seja, uma mulher culpando outra mulher por seu estupro, quando a culpa é exclusiva do estuprador.

Courtney Stoker, blogueira, geek, fanática por ficção científica, diz:

Enquanto fãs de ficção científica não se incomodem que você critique seus filmes e séries, eles apenas deixam que a crítica se foque nos detalhes do roteiro, do mau roteiro, na continuidade, na ciência aplicável. Mas assim que você começa a atacar as lógicas racistas, sexistas, classistas, o que for, destes programas, alguns caras problemáticos vão logo te dispensar.

Por que eles criticam? Eles são os consumidores e muitas vezes os produtores desta cultura sexista na ficção científica e ver sua hegemonia abalada certamente incomoda. "O que uma mulher pode criticar, sendo que esta FC com mulheres boazudas que pouco opinam e heróis brancos e machões com os quais me identifico é perfeita para mim?", pensam eles. Muitas vezes, a entrada de moças nas comunidades geeks, nerds e afins são feitas na base do cosplay, onde elas são assediadas e seus corpos são tocados sem autorização. Qualquer coisa que fuja do estereótipo já estipulado é fortemente combatido. Reclamar da hipersexualização? Reclamar da ausência de personagens com as quais possamos nos identificar? Pode se preparar para a chuva de ofensas masculinas.

"Mas Sybylla, você está exagerando... Não é nada disso, essa coisa de preconceito contra a mulher na ficção científica não existe, isso é mimimi de vocês". Vou dar um exemplo recente, o da SFWA - Science Fiction &Fantasy Writers of America - em um dos seus clássicos boletins, o de número 200, onde Mike Resnick e Barry Salzburg, dois membros antigos da associação começaram a falar sobre as editoras e as escritoras de ficção científica. Poderíamos esperar que eles falassem sobre os enredos, sobre a inclusão no mercado editorial tão dominado por homens, certo? Na verdade, eles mantiveram o nível da conversa sobre como algumas destas autoras e editoras ficariam de biquínis e como eram bonitas.

Obviamente, as mulheres reclamaram. Por que seus corpos e aparência física eram tão relevantes em uma discussão sobre ficção científica? Eles deviam ter mais respeito por quem estava tentando mudar o cenário norte-americano e lançar mais mulheres no mercado. A reclamação foi ouvida e a resposta, dada pelo escritor de horror, fantasia e comédia, CJ Henderson no boletim 201, era que as mulheres "deviam manter uma silenciosa dignidade como qualquer mulher faria". E completou dizendo que as mulheres deviam ser como as Barbies, que sempre foram um "modelo" para qualquer garota, já que ajudavam a manter a silenciosa dignidade que nós mulheres ~devemos~ ter.

No boletim 202, Resnick e Salzburg voltaram, falando sobre censurar, suprimir e banir aquelas que estivessem descontentes com o que eles disseram. Eles consideraram que eram anônimos descontentes e que precisavam ser punidos, já que queriam "calar o direito de expressão" dos membros da SFWA. Fóruns de FC e escritores se revoltaram, e algumas como E. Catherine Tobler saíram da SFWA, seguida de vários outros, como Marilynn Larew, Luc Reid, Ann Aguirre, ultrajados com tamanho machismo dentro de uma associação de escritores, aqueles tidos como os guardiões da liberdade e da igualdade. Tobler ainda escreveu:

Só porque estamos pedindo para sermos respeitadas e por termos nosso ponto de vista respeitado, não quer dizer que queremos obliterar o ponto de vista de outra pessoa.

E tudo isso aconteceu este ano [2013]. Clique e veja a capa do boletim 200. Por que as mulheres são avaliadas por sua aparência e corpo? Não deveria ser nossa produção intelectual o principal fator? Duas mulheres respeitadas no círculo, falando de certos autores e editores de sunguinha não soaria mal e ofensivo para muitos, fora do objetivo pedido? Pois é. Uma coisa é dar sua opinião pessoal sobre determinado autor ou autora. Outra totalmente diferente é tornar pública uma opinião machista onde não cabe nenhum tipo de descrição sobre o tipo físico de alguém. O que eles fizeram é o que muitos caras fazem quando uma mulher posta uma opinião: "Olha, você até que é bonitinha, mas..."

As capas de pulp fictions e outras obras de FC são bons exemplos da sexualização feminina, que usando roupas totalmente inapropriadas para combate, estão lá para enfeite. O autor de FC Jim Hines recriou algumas capas de obras do tipo e o resultado é no mínimo engraçado, porém retrata o nível de livros que reproduzem os mesmos preconceitos já cristalizados na FC.

Uma das reproduções de Jim Hines com a capa de um livro de fantasia.

Mas e aí? Como mudar isso? As produções estão mudando, ainda que em passos tímidos e envoltos em misoginia, como as reações exageradas a respeito das novas Caça-Fantasmas. Temos poucos bons exemplos de personagens que saem dessa mesmice, como Ripley, como Starbuck, Uhura e livros, como de Ursula K. Le Guin, Joanna Russ ou de Octavia Butler, iniciativas como o Universo Desconstruído e autoras e autores que estão buscando incluir sem estereotipar, pesquisando, ao invés de cair no senso comum. O principal deveria ser uma mudança na mentalidade da população, dos produtores, dos autores, para produzir algo que fosse mais inclusivo, que representasse melhor a raça humana. Uma produção voltada para manter estereótipos de gênero, de sexo, de orientação sexual, é danoso, pois acaba perpetuado os mesmos, servindo de inspiração para mais produção assim. Buscar o diferente é possível.

Realmente não entendo como que escritores, que possuem a capacidade de criar mundos maravilhosos, não se sintam impelidos a mudar e arriscar uma nova visão de sociedade e personagens. É preciso sair do sofá literário. Esse é o poder transformador da escrita, representar, criticar, divertir, sendo mais inclusiva. Infelizmente, o mercado continua perpetuando essas visões estereotipadas. Será que Harry Potter teria feito tanto sucesso se tivéssemos uma Hermione Granger no papel principal de salvadora do mundo?

Até mais!


Leia também:
A ficção científica e a estranha tara por mulheres em tubos
Algumas frases extraídas do boletim 200 da SFWA
Being Barbie
Dear SFWA
Cover Posing, by Jim Hines
SFWA, Sexism, Misogyny, and a Call For Change
The SFWA Bulletin, Censorship, Anonymity, and Representation


Já que você chegou aqui...

Form for Contact Page (Do not remove)