A mulher na ficção científica

É de se imaginar que pela riqueza de universos dentro da ficção científica, pela capacidade única de imaginar futuros e cenários para a raça humana, mesmo que baseados no nosso mundo, que a mulher já estaria em um nível diferente, especialmente de igualdade, quando o assunto são as personagens. Existem aquelas que são exemplares, que quebraram estereótipos, mas em algumas questões o assunto precisa evoluir.




Ficção científica é um campo muito prolífico para especulações e extrapolações da realidade. Mas a impressão que passa é que em muitos enredos imaginados, muitas vezes em livros clássicos de FC, as mulheres foram extintas ou são excluídas da sociedade, já que elas não aparecem. Quando aparecem, são uma empregada, uma vilã sexy, a filha de alguém, a esposa de alguém, a amante de alguém. Não quer dizer que sexo e sensualidade não possam ser tratados em enredos de FC. Como bem disse a Feminista Cansada:

Não tenho problemas com o corpo feminino sendo sexualizado, contanto que esta não seja a ÚNICA função do corpo feminino.

Existem personagens femininas em posição de destaque. Existem personagens fortes, mas muitas delas sustentam o enredo do herói, como o caso de Trinity, em Matrix. Mesmo que estejam em posição de destaque, ainda assim é possível ver que em alguns casos as tais superestimadas "fraquezas femininas" aparecem, enquanto que com os personagens masculinos eles dificilmente são postos em questão. O homem é em geral branco, definitivamente heterossexual e um lutador incansável e indestrutível. Nos mesmos enredos, as mulheres são coadjuvantes, namorada de alguém, uma médica, uma refugiada, que precisa de proteção. Estas fraquezas sempre são levadas ao máximo quando é uma mulher e são poucos os enredos que abordam isso como se deve. O ser humano tem fraquezas, mas não é só a mulher. A personagem Kiera Cameron, da série de ficção científica Continuum é um bom exemplo.

Continuum
Kiera Cameron

Ela é forte, lutadora, uma policial valente, que não pensa duas vezes antes de se pôr em perigo, tendo viajado ao passado na tentativa de prender vários terroristas da sua época. Seria a personagem com menos estereótipos da televisão atualmente se não fosse pela saudade do filho e do marido e as cenas de choro na madrugada. Sei que pode parecer polêmico afirmar isso, mas quem disse que é uma obrigação que toda mulher se case e tenha filhos? Você já viu cenas em que os personagens homens caem no choro de saudades da esposa e dos filhos? Difícil lembrar, não é? São várias cenas dela se maquiando, se perfumando, enquanto seu papel como policial às vezes é deixado de lado. Eu sou vaidosa, adoro maquiagem e perfumes, mas não vejo como apenas isso pode me definir como mulher.

Starbuck, ou Kara Thrace de Battlestar Galactica é talvez um daqueles personagens odiados e amados da ficção científica. Aliás, a série toda quebrou muitos estereótipos em seus personagens marcantes, inclusive mostrando de maneira muito explícita as fraquezas e os demônios pessoais de todos eles. Quem não lembra das cenas do coronel Tigh enchendo a cara por causa da esposa? Starbuck é piloto de Viper, bebe e joga constantemente, sexualmente ativa com muitos parceiros e que não tem papas na língua. Desrespeita oficiais, se mete em brigas de bar e não consegue se amarrar a ninguém. Mas também é sensível, carente e perturbada pelas lembranças da infância. Mesmo as personagens menos intensas, como Laura Roslin, a presidente das Colônias, tem força, ela sabe se impôr e às vezes é mais polêmica do que o próprio Bill Adama, como quando sugere que a Almirante Caine seja morta. São personagens que mostram múltiplas camadas emocionais e que evoluem na trama, como qualquer ser humano na vida real.

Starbuck
Starbuck

Star Trek inovou nos anos 60 ao colocar uma personagem negra e mulher no elenco fixo de sua série clássica. Uma negra, um oriental, um russo, um alienígena, tudo isso faria da ponte da Enterprise um lugar que demonstrasse a união e a igualdade da raça humana num futuro utópico. Não fosse o fato que o capitão é homem, branco, heterossexual garanhão, indestrutível, o cowboy intergaláctico, a expressão máxima do clichê masculino. Com a Nova Geração a coisa melhorou um pouco, já temos Deanna Troi e a Doutora Beverly Crusher, mas o comando ainda fica com os homens, novamente, brancos e heteros.

Em Deep Space 9, uma evolução. O comando é dado a um negro (mas hetero, pai solteiro), com várias mulheres fortes ao redor. Mas é somente com Star Trek Voyager que o comando é entregue à uma mulher, Kathryn Janeway. Curiosamente, os fãs mais fundamentalistas de Star Trek odeiam a série Voyager e muitas piadas e memes de mau gosto foram feitos sobre a capitã. Janeway é firme, toma decisões polêmicas, se envolve em missões suicidas para salvar os seus, não recusa uma batalha e ainda assim consegue criar um ambiente próximo ao lar dentro da Voyager. Acho que enfim foi uma personagem digna de quebrar estereótipos dentro do clube do Bolinha que é Star Trek.

Capitã Janeway

O machismo não fica restrito às séries de TV e aos cinemas. Uma postagem do io9 chamada Women Who Pretended to Be Men to Publish Scifi Books (Mulheres que se passam por homens para publicar livros de ficção científica) mostra o quanto o mercado ainda tem preconceito com a produção cultural feita por mulheres. E um caso curioso, vindo da fantasia: um livro para adolescentes escrito por Joanne Rowling não pegaria bem, e o editor sugeriu que a autora usasse apenas as iniciais de seu nome no livro. Como Joanne não tem um nome do meio, ela emprestou o nome da mãe, Kathleen, e ficou eternizada como JK Rowling, a criadora do universo Harry Potter. Quando conheci os livros do menino bruxo, achava que era um homem escrevendo, justamente pelas iniciais.

Isso, esse preconceito já dos editores, dá a impressão ao público em geral que mulher só escreve livros de auto-ajuda, culinária, erótico ou de amor romântico. E não há nada errado em escrever nestes gêneros, que também estão carregados de preconceito da parte de vários leitores. Se uma mulher escreve ou lê um livro de amor romântico ou erótico, é logo caracterizada como fútil, burra, autora e leitora de livros de mulherzinha. Quando um homem escreve livros assim, ele é um cara sensível que soube captar a alma humana.


Se mulheres precisam se passar por homens para publicar ficção científica ou especulativa, como PD James, CL Moore, Francis Stevens, James Tiptree Jr., é sinal de que nem tudo são flores na FC se você for mulher. Se for homem, super sexy hot girls do espaço estarão disponíveis para wallpapers em seu computador, nos quadrinhos, nas séries, nos filmes. Tente fazer o mesmo se for mulher, procurando por homens para a mesma finalidade. O mercado é sustentado em sua grande maioria por homens, produzido por eles e para eles, mas não quer dizer que não estejamos aí, consumindo esse material. Ao contrário. Somos a maioria dos leitores de ficção e metade dos jogadores de games são mulheres. Por que o mercado nos exclui? Porque não nos reconhece como consumidora em potencial.

Seria ótimo ver mais produção feminina na ficção científica, em especial traduzidas para o português e que as editoras fizessem o devido trabalho de marketing para que essa produção fosse mais conhecida. Gostaria de ver alguma editora nacional trazendo Octavia Butler, uma das maiores escritoras de ficção científica, praticamente uma desconhecida aqui. Gostaria de ver o pessoal lendo A Mão Esquerda da Escuridão, de Ursula K. Le Guin, Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, gostaria de ver autoras nacionais tendo espaço no mercado, gostaria de ver uma ficção científica menos machista, que pare de mostrar mulheres como veículos para o enredo do herói, onde acabam mortas, agredidas ou estupradas, gostaria de ver mulheres sem os estereótipos negativos como frágeis, fúteis, bibelôs e desprotegidas, mulheres trans* em papéis de destaque, homens que não sejam todos guerreiros, indestrutíveis e rasos. Este é um gênero que busca o futuro, e não quero um futuro de desigualdade.

Até mais!



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