A leitura feminina pelos olhos da arte

Hoje em dia podemos comprar livros em vários lugares. Seja na internet, nos sebos e livrarias físicas, até mesmo em máquinas automáticas no metrô. Lendo pouco ou lendo muito, as pessoas utilizam da leitura em todos os lugares, seja no celular, seja para ler uma placa de rua. Tendemos a achar que essa capacidade é algo que sempre nos foi garantido. Mesmo nos dias de hoje, o acesso à educação varia imensamente dependendo da classe, da nacionalidade ou mesmo da origem religiosa. E para as mulheres ao longo da história, e ainda hoje, o acesso à literatura através da educação foi muitas vezes negado.

A leitura feminina pelos olhos da arte
Woman Reading by a Paper-Bell Shade, de Henry Robert Morland (1766). Óleo sobre tela.

Nas famílias ricas que podiam se dar ao luxo de educar suas filhas, a leitura era algo considerado uma competência essencial para o casamento, em vez de lhes proporcionar a liberdade de fazerem as suas próprias escolhas vocacionais. Alguns consideravam a educação das mulheres uma perda de tempo ou mesmo imoral. Acreditava-se que a leitura poderia prejudicar ou corromper a mente de uma mulher, apresentando-lhe ideias radicalmente novas e até mesmo perigosas. Em casos mais extremos, acreditava-se que se uma mulher possuísse demasiado conhecimento, isso poderia contribuir para a sua infertilidade.

O mais provável é que a sociedade tivesse medo das histórias que as mulheres poderiam contar, se tivessem as competências e a alfabetização para isso, afinal, todas conhecemos o famoso ditado “conhecimento é poder”. A leitura não apenas abre um mundo de fantasia e imaginação ilimitadas, mas também o pensamento independente e novas compreensões do que nos rodeia e sobre nós mesmas, o que, sem dúvida, nos ajuda a progredir e a avançar como sociedade.

Se olharmos para a história da arte, vemos que o ato da leitura feita por uma mulher é um tema muito comum, apesar da escassez da educação das mulheres ao longo dos séculos. Ao vermos uma obra de arte onde uma mulher está lendo silenciosa e tranquilamente seu livro, ela é tudo menos tranquila. Muitos pintores retrataram mulheres lendo, o que é intrigante e até ameaçador do ponto de vista masculino. O poder, a liberdade, a privacidade e o prazer envolvidos naquele ato são exclusivos daquela mulher e os homens ficam de fora dessa esfera. O mundo está nas mãos da mulher que lê.

Alberto Manguel, em seu livro Uma história da leitura, observa que os leitores se deparam com uma ambiguidade curiosa. Muita gente se surpreende quando ouve alguém dizer que gosta de ler, como se um leitor tivesse um dom especial, mas leitores (principalmente as mulheres) são vistas como escapistas, fúteis e volúveis, pessoas que não investem numa leitura "séria". Assim, não surpreende que a figura de uma mulher lendo seja tão recorrente e vista como uma forma de resistência.

Obras de arte com mulheres lendo se tornaram comuns no século XIV, principalmente nas representações da Anunciação. Também são comuns as imagens de Madalena lendo. A representação de mulheres envolvidas na vida de Cristo lendo simbolizam o Verbo divino, onde elas apreendem o poder de Deus e também representam seus receptáculos, capazes de passar a palavra adiante.

The Reading Girl por Théodore Casimir Roussel (1847–1926)
The Reading Girl, por Théodore Casimir Roussel (1847–1926)

A mecânica básica da leitura exige que as palavras do autor se tornem as do leitor. Ao ler o que está escrito, as palavras que estavam em meus lábios e em meus pensamentos inevitavelmente se tornarão suas. Nossos lábios e pensamentos se encontram e se movem em harmonia. Esta união é por vezes mais profunda do que a meramente mecânica, uma união não apenas de lábios, mas de ideias, espíritos, corações. Walt Whitman não hesita em caracterizar esta união como erótica. Logo, ver uma mulher lendo simboliza uma independência bastante sensual, onde ela não depende de alguém para obter conhecimento. Ela mesma pode buscar na fonte e aprender o que precisar. Quer algo mais revolucionário que isso?

De certa forma, quando homens retratavam mulheres lendo, eles buscavam invadir esse espaço pessoal que lhes era inacessível. Tudo o que uma mulher pudesse fazer sem sua presença era temido. Ler abria portas as quais eles jamais acessariam.

Até mais!

Leia também:
Conlon, James. Men Reading Women Reading: Interpreting Images of Women Readers. Frontiers: A Journal of Women Studies, Vol. 26, No. 2 (2005), pp. 37-58

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Comentários

  1. Que texto MARAVILHOSO! Nunca tinha pensando desse ponto de vista sobre os homens pintarem mulheres lendo porque eram excluído disso, mas faz muito sentido

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