Geografia e a construção de mundos fictícios

Sei que muitos sabem que eu sou geógrafa de formação, mas outras pessoas, especialmente a galera que me segue há pouco tempo desconhece essa informação. E uma coisa que eu gosto muito de fazer nos meus livros é de escrever universos com a maior precisão geográfica, geológica, até astronômica possível. Uma observação que fizeram do meu livro Diga meu nome e eu viverei foi justamente a questão da geografia de São Paulo ter sido usada como componente essencial do enredo. A ideia aqui é ajudar você a criar enredos com uma geografia que faça sentido, ou o mais próximo disso.

Geografia e a construção de mundos fictícios

Júlio Verne era um apaixonado pela ciência, especialmente pela geografia. Cinco Semanas em um Balão, Viagem ao Centro da Terra, são algumas de suas obras que demonstram sua devoção para a ciência geográfica. Várias obras tanto de ficção científica, quanto de fantasia, oferecem grandes universos detalhados com rios, continentes, ilhas e eventos geográficos. Na internet não é difícil achar ferramentas que criam mapas para universos fictícios, como o Fractal World Generator. Neste site aqui você pode ver como a Terra era há milhões de anos atrás e pode te inspirar a criar mundos específicos.

Alguns universos requerem uma ambientação que preze pela precisão geográfica de eventos. Como seria o mundo de As Crônicas de Gelo e Fogo sem as diferentes referências dadas pelo autor? Até podemos inferir que Westeros se passa em outro planeta, um em que o inverno dura anos, diferente do nosso inverno que dura três meses todos os anos. Percebe como essas diferenças enriquecem as narrativas?

Mas se ela for feita de qualquer jeito, ela também pode se voltar contra o autor. Um problema da ficção especulativa em geral é criar planetas com um único bioma ou um único clima, algo que grandes franquias como Star Wars, Star Trek e Stargate repetem com frequência. Sabemos pela própria geografia da Terra que ela é variada e elegante, tendo uma única cidade como São Paulo uma grande variação climática, de relevo e vegetação. Diferentes latitudes e porções de terra criam climas e vegetações diferentes. E se você alterar demais a ciência por trás disso, terá que centralizar seu enredo em uma realidade alternativa.

Quando você criar o seu mundo pare e pense com cuidado na geografia dele. Onde se passa? Quais característica do terreno são relevantes no enredo? Que tipos de fenômenos climáticos são importantes?

Atenção às distâncias
Para traçar corretamente a jornada de Frodo rumo a Mordor, JRR Tolkien utilizou manuais militares e calculou distâncias pela Terra Média (ainda que sua cosmologia seja pré-copernicana e ele nunca se importou em amarrar melhor as ideias a respeito). Dessa forma ele conseguiu calcular com precisão quanto tempo Frodo e Sam levariam até chegar à montanha seguindo, principalmente, a pé. Pense que eles tiveram que atravessas descampados, ravinas, montanhas, rios e terrenos difíceis até alcançarem seu objetivo. Não é à toa que levaram tanto tempo.

Arrakis, na saga de Duna, é um planeta desértico, com nenhuma chuva ou nuvens, mas que consegue manter cactáceas na superfície, o que não faz sentido do ponto de vista biológico. Ainda que o enredo seja complexo do ponto de vista político e social, a geografia de Arrakis não faz nenhum sentido.

Quando você for pensar numa jornada dos seus personagens ou se for criar um império, tenha noção das distâncias em que eles estão. Use mapas reais para se basear. Veja a geografia de Westeros, que é praticamente a ilha da Bretanha inteira. Lembre-se do conceito de escala: se seu mapa tem uma escala de 1:20.000.000 (um para 20 milhões) isso significa que um centímetro no mapa equivale a 20 milhões de centímetros na realidade, ou 200.000 metros ou 200km. Quanto maior a escala do mapa, menor a área representada e maior é o nível de detalhamento. Então uma escala de 1:5000 tem um nível de detalhe muito maior do que 1:50.000.

Pessoalmente eu amo livros que contenham mapas. Pense no seu enredo e se será necessário representar geograficamente os locais onde a ação acontece. Rascunhe um e entregue na mão de um cartógrafo para que ele faça os cálculos e plote o mapa para você. Acredite, faz bastante diferença!

Leia mais: Representação de espaços e distâncias

Atenção ao tipo de estrela
Sabia que se a cor da estrela que seu planeta orbita muda, a cor das plantas deste mundo também muda? Nossas plantas são verdes, pois esse é o comprimento de onda que elas refletem. Mas o nosso Sol é uma estrela amarela de sequência principal. As plantas se dão ao luxo de refletir de volta certos comprimentos de onda porque possuem abundância dos outros tipos, principalmente azul e vermelha.

Mas se a sua estrela for uma anã vermelha, por exemplo, uma estrela com emissão bem baixa de energia, você não terá luxuriantes florestas tropicais na superfície. Suas plantas deverão ser escuras, os tons mais próximos do preto, pois essa é a cor que consegue absorver o máximo possível de luz para sua sobrevivência, tanto no espectro visível quando no invisível.

Estrelas brancas liberam muito mais energia no espectro azul do que estrelas amarelas, como o nosso Sol, assim é provável que as plantas sejam azuis aos nossos olhos, precisando refletir o excesso. Planetas orbitando estrelas azuis recebem radiação ultravioleta em demasia, então é provável que formas de vida sejam apenas aquáticas para se proteger dos flashes, mas a uma profundidade de cerca de 9 metros para poder ter luz suficiente.

Leia mais: Vida e cores em outros mundos

Atenção às feições geográficas
Cadeias de montanhas são verdadeiras barreiras em determinados terrenos. Grandes extensões de terra podem ser desérticas na região central, com umidade na área do litoral, como era a Pangeia antes que ela começasse a se partir 200 milhões de anos atrás. Sem a Cordilheira dos Andes, o Rio Amazonas corria rumo ao Pacífico e não rumo ao Atlântico como temos hoje.

São vários os efeitos climáticos e geográficos que feições geográficas como montanhas, cavernas, ilhas, penínsulas, enseadas, possuem. Vale à pena você estudar como elas se formam e como o ambiente sofre influência delas. Sabia que Cabo Frio, no Rio de Janeiro, tem esse nome por que uma corrente gelada das Malvinas ressurge ali? É o que chamamos de ressurgência. As águas frias e nutritivas vindas do sul chegam à superfície naquela região, que leva a uma produtividade de peixes. Outro lugar com ressurgência é o Cabo de Santa Marta, em Santa Catarina.

Em Cabo Frio, a ressurgência ocorre no verão, o que surpreende os turistas que encontram temperaturas na casa dos 15°C. Os ventos alíseos empurram as águas superficiais, quentes e mais pobres em nutrientes, da Corrente do Brasil para longe do litoral, fazendo com que as águas mais frias e ricas em nutrientes subam. A topografia da plataforma continental da região também ajuda a corrente a subir, que torna a região fria. Estudar detalhes assim podem te dar dicas para enriquecer seu enredo e a geografia de seu universo.

Atenção às geografias
Geografia, ao contrário do que muita gente pensa, não é só o estudo de mapas ou decorar as capitais dos países. Se seu enredo é um livro cyberpunk em uma cidade de 1 bilhão de habitantes, existem várias geografias aqui para você trabalhar. Tem a própria cartografia dessa cidade. Ela é dentro de muros? É cortada por rios? Ela tem partes subterrâneas? Como é a distribuição de água? Além dessa geografia, há a geografia urbana. Como se dão das dinâmicas sociais nas vias de circulação? As fábricas, onde ficam? Ela tem arranha-céus de mais de um quilômetro de altura? Tem periferias pobres com construções improvisadas?

Pensar a geografia do seu enredo, da sua cidade, do seu universo é pensar em como as pessoas, como os seres que neles vivem se relacionam com o espaço que habitam. Veja o exemplo dos seres humanos e a forma como produzimos e reproduzimos o espaço dando novos significados e novas camadas de produção aos lugares. Um bairro industrial perde suas fábricas com o passar dos anos e ganha shoppings, supermercados e condomínios de alto padrão. O centro das cidades, antes a vanguarda do urbanismo e da modernidade, acabam sucateados, abandonados pelo poder público e pelas pessoas, tornando-se locais sombrios, pouco frequentados e sujos.

Quando você pensa na geografia do lugar é pensar em todas essas camadas, em todos os níveis, seja a topografia, a hidrografia, a urbanização, a vegetação. A questão não é criar um compêndio geográfico para o seu enredo, mas pensar em todas as possíveis geografias deste lugar que podem servir para o desenvolvimento de seus personagens e suas ações.

Espero que essas dicas sejam úteis. Deixe nos comentários suas considerações!

Até mais! 🌏

Leia mais:
7 Simple Things To Remember About Setting - Writers Write
Geography and Science Fiction: the Creation of Realistic Alternative Worlds - Geocurrents
Top 5 WORLDBUILDING Must-haves - Veronica Sicoe
Jules Verne, Geography and Nineteenth Century Scotland - Ian B. Thompson

Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Uma das dicas que mais gostei por aqui. Com certeza terei que parar com mais tempo para analisar os links e já matutar em como desenvolver tudo isso porque realmente é muito importante. Recentemente me peguei com uma ideia para uma história de aventura e fantasia em que muito me interessa criar um novo mundo. Eu já havia parado para pensar um pouco sobre a divisão dos lugares e até a fauna, flora, e o tipo de cidades e população; porém, após ler esse maravilhoso texto, eu estou mais consciente que tenho muito, muito trabalho pela frente e que vai demorar bem mais tempo do que eu pensava, mas isso também me deixou bem animada.

    Muito obrigada pelas ótimas explicações bem detalhadas que você sempre da ♡~

    ResponderExcluir
  2. Ótimas dicas, eu gasto horas da minha madrugada elaborando mapas fictícios onde passam minhas histórias, é tão agradável quanto escrever a história em si.
    Outro ponto que eu gosto de dar bastante atenção é na elaboração de biomas dentro desses mundos. Sabemos que um vale por conter certos tipo de biomas, como pântanos e bosques e em um platô podem ocorrem outros tipos, como brejos (o "moor", tão utilizado na literatura inglesa) ou áreas nevadas, etc.
    É mesmo uma idéia muito boa dar atenção à geografia da história.

    ResponderExcluir
  3. Sou geógrafa. Curti seu Blog. Parabens👍

    ResponderExcluir

Postar um comentário

ANTES DE COMENTAR:

Comentários anônimos, com Desconhecido ou Unknown no lugar do nome, em caixa alta, incompreensíveis ou com ofensas serão excluídos.

O mesmo vale para comentários:

- ofensivos e com ameaças;
- preconceituosos;
- misóginos;
- homo/lesbo/bi/transfóbicos;
- com palavrões e palavras de baixo calão;
- reaças.

A área de comentários não é a casa da mãe Joana, então tenha respeito, especialmente se for discordar do coleguinha. A autora não se responsabiliza por opiniões emitidas nos comentários. Essas opiniões não refletem necessariamente as da autoria do blog.

Form for Contact Page (Do not remove)