Caixa de Pássaros e maternidade

O filme Caixa de Pássaros (Bird Box), baseado no livro de mesmo nome, estreou recentemente na Netflix e tem gerado altas discussões entre os espectadores. O que seriam as feras, como elas afetam a mente das pessoas, como você sobreviveria em um mundo desses. Mas há mais coisas no filme do que simplesmente andar por aí de olhos vendados.

Caixa de Pássaros e maternidade

Caixa de Pássaros conseguiu adaptar o livro com bastante competência. Nós começamos o filme vendo uma transtornada Sandra Bullock, no papel de Malorie, conversando com duas crianças e praticamente implorando que nunca retirem as vendas, que se olharem para o que está lá fora, eles morrerão. Em seguida, vemos uma Malorie grávida, pintando em sua casa, conversando com a irmã. E logo notamos que Malorie não está feliz com aquela gravidez. Tanto que nos exames de rotina com a obstetra, ela chama o bebê de sementinha e a médica chega a lhe oferecer um panfleto que informa sobre o procedimento de adoção.

O mundo, por sua vez, está caindo. A televisão mostra a onda de suicídios e os distúrbios acontecendo lá fora, o desespero das pessoas e enquanto está saindo do médico, seu mundo também cai. Malorie se vê sozinha no meio da rua, vê pessoas morrendo e acaba acolhida em uma casa onde alguns já se refugiaram e onde eles montam uma fortaleza, cobrindo janelas e trancando portas, isolando-se do mundo que está indo para seu derradeiro fim.

Alternamos as visões entre a Malorie de cinco anos antes e depois a Malorie com as crianças no rio, sozinha. O que aconteceu com todas aquelas pessoas da casa? Como ela ficou sozinha daquela forma? Este é um mundo de uma maternidade caracterizada pelo medo e pela violência, tudo o que a gente não esperaria. Maternidade costuma estar associada com amor, segurança, exatamente o que não vemos em Caixa de Pássaros.

A começar pela própria Malorie que se recusa a se conectar com seu bebê. Olympia, uma moça gentil, amorosa, que busca refúgio na casa e também está grávida, é o oposto de Malorie. Sozinha, pois o marido era militar, ela admite não conseguir viver sozinha, tendo sido mimada e cuidada por todo mundo ao seu redor; já Malorie teve uma vida diferente, sabendo manejar armas e tendo lidado com uma família disfuncional desde sempre. E é justamente essa mulher que se recusa a ser mãe, que precisou cuidar de si desde o início que será responsável por salvar a esperança da humanidade, que são as crianças.

Em um mundo como Caixa de Pássaros, as crianças seriam imediatamente as mais afetadas. Com a morte dos adultos, elas não teriam como se manter e assim que olhassem para as feras alucinantes, também estariam perdidas. O longa então lida com essa anti-heroína que foi colocada neste papel de guardiã de duas crianças que agora precisa salvar a si e a eles. Temos aqui discussões que envolvem a criação de novos seres humanos, a dificuldade de lidar com crianças (e a ansiedade das pessoas quando estão em contato com elas), os paradoxos e desafios da maternidade.

O cinema e a literatura já trataram diversas vezes de como a maternidade causa um profundo terror e reverência nas pessoas. De bebês alienígenas e híbridos, anti-Cristos e demônios, crianças malignas e até que voltaram dos mortos, as crianças são capazes de fazer aflorar nos adultos os mais contraditórios sentimentos, que vão de sobrevivência, futuro da humanidade, medo, incapacidade de cuidar do outro, irritação e até desprezo.

O filme lida com dualidades: amor e ódio, vida e morte, esperança e desespero; sentimentos que são trabalhados na luta de Malorie para manter as crianças vivas e a si própria. A cineasta dinamarquesa Susanne Bier explora os sentimentos mais profundos da raça humana canalizados pela maternidade relutante de Malorie. Vemos que ela nem ao menos deu nomes às crianças; eles são Garota e Garoto, com Malorie privando-os de qualquer identidade além disso.

A preocupação de Malorie, lá no começo, de não conseguir se conectar com seu bebê, nem de ser uma boa mãe para ele, a ponto de considerar a adoção, é um temor frequente para as mães. Muitas mulheres nunca quiseram ser mães e acabaram sendo, existem mulheres que se arrependeram de terem tido filhos e precisam conviver com esse arrependimento, existem mulheres que se realizaram como mães. Caixa de Pássaros nos mostra que esses sentimentos contraditórios existem e não podem ser ignorados por uma suposta santificação da maternidade.

Sandra Bullock em uma cena de Caixa de Pássaros, em um barco, segurando remos, vendada e com as duas crianças na frente

Malorie não mostra afeição pelas crianças. Ela não tem nenhum tom amável em sua fala com eles. Ela sequer os nomeia, talvez com medo de se apegar a pessoas que ela pode perder a qualquer momento. É um cuidado mecânico, como o de um socorrista a um acidentado na rodovia. Isso demonstra a distância que ela tenta manter das crianças, pelo próprio medo de nunca conseguir ser uma mãe para eles. Isso já contraria o que a audiência espera de uma representação maternal. Caixa de Pássaros mostra as agruras do caminho, de como a maternidade muitas vezes é performada fora do padrão esperado pela sociedade.

É interessante notar que na vida real Sandra Bullock é mãe de duas crianças adotadas, Louis, de 8 anos, e Laila, de 3 anos. De acordo com a própria atriz no painel feito pela Netflix na ComicCon, ela vive apavorada pensando nos filhos, de como ela foi uma mãe péssima ontem e precisa melhorar hoje e amanhã e como esse sentimento é presente nas mulheres. Essa experiência diária com a maternidade foi mais que suficiente para preparar a atriz para o papel de Malorie, de como precisaria agir com as crianças no longa.

No final do filme, ao fim da jornada das crianças e de Malorie, percebemos que ela passa por uma transformação. E embora ela se sinta uma mãe, ela continuará a mesma pessoa, mas que por acaso agora é mãe, que ama seus filhos e faz o que pode para deixá-los seguros. Não só isso, ela mostra que perdeu o medo de amar e de ser amada, ainda que com todas as falhas que carrega. Libertar os pássaros no final acaba sendo uma libertação dos sentimentos de Malorie, que agora podem voar livres.

Até mais!

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Comentários

  1. ** COMENTARIO COM POSSÍVEL SPOILER **

    Adorei a sua leitura!!! Minha irmã e eu também interpretamos o ato de não dar nomes pra crianças como uma forma de proteção pra elas, afinal, a "voz" da fera chamava as pessoas por seus nomes. Se não fossem identificadas, as crianças estariam menos suscetíveis aos ataques.

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  2. O que eu também gostei muito nesse filme é que ele evitava o quanto pudesse mostrar violência gráfica e que a personagem da Bullock (e mais alguns personagens) sempre buscava as soluções mais humanas possíveis. Todos os violentos tiveram fins violentos também. E aí, fugindo do filme, eu acho que foi isso que fez Walking Dead decair tanto. Ele (e outros filmes/séries de horror) virou uma história dominada pela violência gráfica e não sobre a humanidade sobreviver com o que ela tem de melhor. Pra ver violência gratuita, basta ligar a TV ou ler o jornal. Acho que o filme acertou porque mostra que não importa o quão ruim as coisas estejam, dá pra ter esperança e você não precisa mudar e abdicar dos seus valores pra isso.

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  3. Eu não tive essa leitura na primeira vez que vi o filme, mas dps de trocentos comentários do pessoal do twitter, em especial uma menina que falou que dps de ver o filme ficou com uma vontade estranha de mae, me deixou curiosa, vi o filme novamente e aí sim consegui fazer uma leitura parecida com o que vc falou por aqui, embora não tao clara qto seu texto rs. Ótimo texto.

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  4. Eu não li o livro e não sei se pretendo assistir ao filme, mas mesmo assim canhei seu texto muito rico e instigante, com uma ótima análise!

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