O problema de Sarah Connor

Sarah Connor é uma das grandes heroínas de ação e ficção científica. Admirada por sua força e determinação, ela aparece fácil em qualquer lista de grandes personagens da FC. Mas há um problema com essa personagem tão boa. Para adiantar o expediente, digo: eu gosto da Sarah e você não está proibida de continuar gostando ela. Sinto que é chover no molhado ter que repetir isso toda santa vez que eu escrevo sobre uma personagem, mas ainda tem gente que não entende que crítica não é proibição.

O problema de Sarah Connor
Arte de Guillermo Murua

Gosto muito da forma como Sarah representa as mães solo. Sabemos que no Brasil há cada vez mais mulheres solteiras, separadas ou que foram deixadas pelos companheiros liderando residências. E ainda há um preconceito com elas. Existe no imaginário social que família se resume a pai, mãe e filhos, mãe essa em geral dona de casa e responsável por ela e pelas crianças, tendo o homem como provedor. E apesar de mulheres hoje serem as chefes de família de 40% dos lares brasileiros, muitas ainda estão em posição de vulnerabilidade, especialmente as mulheres negras.

Se olharmos no país de origem de Sarah, o preconceito por lá também continua forte. Cerca de 70% dos norte-americanos acreditam que mães solteiras criando crianças é ruim para a sociedade. E quando assistimos a O Exterminador do Futuro e vemos essa jovem estudante, tentando cobrir o cheque especial, trabalhando e tentando paquerar ganhando um fardo imenso da maternidade, ela acaba se tornando um símbolo. Não é à toa que James Cameron acredita que ela seja melhor que a Mulher-Maravilha e disparou groselha azeda por aí um tempo atrás.

Leia também: Resenha: O Exterminador do Futuro, de James Cameron, Randall Frakes e W.H. Wisher

No segundo filme, vemos uma Sarah atormentada por eventos que ela presenciou - e acho que encontrar um robô assassino do futuro deve mesmo mexer com a cabeça de qualquer um - e se torna uma mãe super protetora, fanática, que quer treinar John Connor como o melhor líder da resistência que ela puder. Segundo o próprio John, ela se relacionava com qualquer sujeito que pudesse dar ao filho uma habilidade, um conhecimento, algo que fosse útil para o grande líder da resistência humana do futuro. Declarada incapaz de cuidar do próprio filho, ela é jogada num hospital psiquiátrico.

Enquanto a série Sarah Connor Chronicles conseguiu dar mais profundidade à personagem e até colocou mais personagens femininas, Sarah não tem outras mulheres com quem interagir nos filmes. Sua colega de quarto no primeiro filme morre. No segundo filme, só existe uma enfermeira durona que nem gosta muito dela. O grande problema de Sarah é: ela não tem nenhuma outra identidade além da maternidade. Suas decisões, suas ações, são todas voltadas para proteger John. Antes mesmo de engravidar, Sarah é um útero ambulante e seu destino está atado à sua capacidade de engravidar da pessoa certa para gerar alguém.

Por alguma razão, James Cameron acha isso o máximo. O que a gente mais tem são homens contando histórias sobre mulheres. E Sarah não é diferente, já que para muitos caras a mulher apenas alcança sua realização máxima com a maternidade. Mesmo não sendo verdade para todas as mulheres, porque sim, existem mulheres que se realizam como mães, essas mães ainda são mulheres. E Sarah acaba sendo unidimensional.

Cameron também disse que a Mulher-Maravilha era um retrocesso e que ela era objetificada, um passo para trás e, claro, exaltou sua própria criação. Bem, James, não quero chover no seu churrasco, Sarah pode até não ser sexualizada, mas ela está atada aos personagens masculinos do enredo, presa a um filho que ela não esperava ter. Ela é obcecada, focada e insensível quando estão fugindo do T-1000, a ponto de não abraçar o filho, mas sim procurar por buracos de bala no garoto porque ele é importante demais, mais até do que a vida dela.

Além disso, Sarah também tropeça no estereótipo da concepção imaculada ou mística. Não apenas Jesus como também Darth Vader, mas vários outros exemplos estão por aí. E na maioria dos casos, é uma concepção não consentida. A mulher é apenas impregnada e boom!, nasce um bebê. Não vemos nenhum momento dessa mulher grávida, passando pelas agruras naturais do parto. Se concebe, se nasce, simples assim.

É como se Sarah não tivesse propósito além de John. Ela tenta constantemente ensiná-lo algo valioso, algo que o ajude a ser um líder melhor, não um ser humano melhor. E o pior, no futuro Sarah ganha um ar quase místico, sem dúvida mítico, vista como uma mulher sábia, uma guerreira, a ponto de fazer Kyle Reese se apaixonar por uma foto. Uma foto! É no sofrível e dispensável filme O Exterminador do Futuro: Gênesis que nós temos uma Sarah que questiona brevemente a questão da maternidade e de ter que se deitar com Kyle para John nascer. Ela quer decidir a respeito e não fazer por fazer.


A maternidade pode sim consumir uma mulher. Todos os dias você verá mulheres cansadas, esgotadas, cuidando de filhos, cuidando da casa, estudando, trabalhando, algumas sem nenhum tipo de apoio do marido e/ou dos pais das crianças. Mulheres que, muitas vezes, tiveram filhos e não se sentem mães, mulheres que nunca quiseram ser mães tendo que ser a contragosto. Ainda assim, Sarah não reflete nenhum desses temas. Mães não devem sacrificar suas identidades, suas vidas, para que sejam vistas como boas mães. Nem devem fazer isso por um homem. Parece que se colocar que esse homem é o filho dela, tá tudo bem. Não, não está.

Há outro aspecto da série que reforça a função de "útero ambulante" de Sarah. Quando ela quase mata Miles Dyson e o filho a impede, ela solta esse discurso para cima dele, depois que ouvem a história do exterminador:

Homens de merda como você criaram a bomba de hidrogênio. Homens como você pensaram nisso tudo. Você se acha tão criativo. Não sabe como é, realmente, poder criar algo; criar vida, de senti-la crescendo dentro de você. Tudo o que você sabe criar é morte e destruição...

Aqui há um reforço de um velho e batido estereótipo: mulheres criam, homens destroem. É um reforço ao papel de cuidadora e do papel de destruidor. Tipo, sério? Então, quando Sarah não é uma mulher fria, desumana e calculista, de repente ela é a mãe da humanidade, não só de John, dando lição de moral para cima de um cientista que foi julgado por um crime que ele nem tinha cometido.

Podemos ver Sarah como uma forma de enaltecer mães solo e colocá-las no centro da ação. Infelizmente, seu desenvolvimento ainda é superficial demais para representar uma mulher plena, que também seja mãe. Acredito que essa seja a diferença entre Sarah e Ellen Ripley. Enquanto Ripley é uma mulher, oficial de voo, que sobreviveu a um embate com uma criatura perigosa, mas que por acaso também é mãe, Sarah não se desvencilha da figura de mãe. E ainda se torna totalmente definida por esse papel.

Até mais!

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Comentários

  1. Amei o texto, sempre admirei muito a Sarah, mas parando pra pensar sobre a construção dela, ela tá cheia dessas marcas que a deixam unidimensional. A gente acaba se apaixonando pela única face que é mostrada, mas faltam outros aspectos pra compor a personagem.

    Sybylla, há um tempo eu ouvi de um grupo de mães, que elas consideram o termo "mãe solteira" não adequado, já que a maternidade não está atrelada a nenhum estado civil. Elas preferem o termo "mãe solo" pra designar essa mãe que é responsável sozinha, ou majoritariamente sozinha, pela criação das crianças.

    Enfim, parabéns pelo trabalho sempre incrível! <3

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