Resenha: Justiça Ancilar, de Ann Leckie

Eu já tinha lido Ancillary Justice, tinha pirado completamente no livro, mas decidi esperar a edição brasileira quando a Aleph anunciou que o livro multipremiado estava chegando. Aí eu esperei, esperei, esperei, esperei... Nós esperamos, choramos, nos desesperamos, imploramos junto às redes sociais da Aleph, mas a espera acabou! Justiça de Toren atracou nas livrarias e nos nossos corações trazendo um novo clássico da ficção científica.


Este livro foi uma cortesia da Editora Aleph


O livro
Breq é uma das personagens mais complexas que tive o prazer de ler na ficção científica. Esta também é uma trama complexa e demora até você compreender as motivações da protagonista. Uma das primeiras coisas que sabemos é que Breq é uma nave. Ou melhor, a consciência de uma nave, sua inteligência artificial, mais especificamente da Justiça de Toren. Essa consciência é dividia com dezenas, centenas de outras ancilares, que nada mais são do que zumbis. Basicamente são prisioneiras do império que se tornam escravas das naves e suas servas através de implantes corporais. Breq matou milhares e agora está em busca de apenas um alvo para completar sua vingança.

Resenha: Justiça Ancilar, de Ann Leckie

A primeira característica marcante do enredo é o fato de ter neutralidade de gênero. E Breq nos explica isso logo no começo:

As radchaai não ligam muito para gênero, e a língua que falam - minha própria primeira língua - não marca gênero de forma nenhuma. A língua que estávamos falando agora marcava, e eu podia criar encrenca para mim mesma se usasse as formas erradas.

Página 13

Ou seja, enquanto acompanhamos a jornada de Breq por vingança, o enredo é narrado no feminino. E vou te dizer, ler em inglês e em português foram duas experiências diferentes, pois o português é um idioma marcado pela diferenciação de gênero, muito mais que o inglês. Então para nós fica muito mais evidente a diferença nos tratamentos. Há um aviso no começo falando sobre as adaptações feitas para nosso idioma, algumas com a permissão da autora, que compreendeu a dificuldade de traduzir alguns termos.

Breq sabe que sua missão é difícil, mas ainda assim para no meio do caminho para salvar alguém que conheceu há muito tempo. Seivarden era uma oficial do Radch, alguém que ela não via há muito tempo, alguém inclusive com quem ela se importava pouquíssimo. E ainda assim Breq salva a vida de Seivarden, e as duas formam uma dupla altamente improvável. Em alguns momentos Breq precisa se segurar para não quebrar Seivarden de porrada, porque ela é chata e insuportável, pensando ser alguém superior devido à sua casa e origem. Em alguns momentos ela merecia mesmo uma porrada.

O Império do Radch tem uma política agressiva de expansão, cujas naves de guerra milenares, como a desaparecida Justiça de Toren, garantem a tática expansionista. Ele invade e anexa planetas inteiros, com a desculpa de levar civilização para eles. Qualquer um fora deste império é visto como um selvagem, um bárbaro. Nada poderia ser mais parecido com a política externa dos Estados Unidos e seus conflitos pelo mundo com a desculpa de levar democracia e civilidade. Há uma imperatriz, a Senhora do Radch, Anaander Mianaai, que possui milhares de clones, assim como as naves possuem suas ancilares e logo percebemos que parece haver algo errado com esta liderança.

A leitura flui bem em alguns momentos, depois cai em outros. Este vai ser um livro que vai dividir opiniões por ser excessivamente detalhado e algumas pessoas podem passar por cima de alguns deles. E é justamente nestes detalhes que estão as grandes revelações do enredo, para que possamos entender as motivações de Breq, de Seivarden, da Senhora do Radch e de como tudo isso está relacionado.

Além de ser narrado no feminino, muitos personagens, especialmente os do Radch, são andróginos. Já que diferenciar gênero não importa, sua aparência masculina ou feminina também não. Nós só temos alguma diferenciação em personagens que não façam parte do império. Este é um excelente exercício mental, pois estamos tão adestrados e acostumados a ler no masculino, ou ter personagens que são um ou outro que sair da zona de conforto pode parecer estranho no começo, mas acredite, você vai curtir.

A edição da Aleph está com uma linda capa, contendo Breq e seu principal desafeto. Não encontrei grandes problemas de tradução e revisão. Senti falta de um glossário, com a definição de alguns termos para as patentes das naves do Radch, porque tem horas que dá um nó cerebral, já que são vários.

Obra e realidade
Quando fiquei sabendo que este livro foi escrito de maneira a não denotar gênero, vibrei de ansiedade para ler logo e ainda saí berrando aos quatro ventos que uma obra como essa existia. Curti mais a experiência em português do que em inglês pelas características do nosso idioma e foi revigorante ler algo que, mesmo tendo vários aspectos reconhecíveis da ficção científica, conseguiu se sair original e atual ao mesmo tempo. Ann se preocupou em ser autêntica e ter originalidade em sua obra ao invés de tentar algo inédito, o que seria bem difícil de conseguir.

Ann Leckie, a dona da porra toda

As alfinetadas aos Estados Unidos estão lá, são bem fáceis de reconhecer e achei sensacional uma série de paralelos que a autora fez com o Radch. Se foram ou não intencionais, ainda assim uma leitora mais atenta vai perceber rápido.

As pessoas frequentemente acham que teriam tomado a atitude mais nobre, mas quando se encontram de fato numa situação dessas, descobrem que as coisas não são tão simples.

Página 150

Pontos positivos
Breq
Escrito no feminino
Império do Radch
Pontos negativos

Pode ser lento em algumas partes

Título: Justiça Ancilar
Título original em inglês: Ancillary Justice
1. Justiça Ancilar
2. Ancillary Sword
3. Ancillary Mercy
Autora: Ann Leckie
Tradutor: Fábio Fernandes
Editora: Aleph
Páginas: 384
Ano de lançamento: 2018
Onde comprar: na Amazon!


Avaliação do MS?
É óbvio que agora queremos a continuação, que queremos acompanhar a nova jornada de Breq e imploro para que não demore tanto quanto este livro. Conhecemos apenas uma porção do Radch e da personalidade de Breq, portanto estou bem ansiosa para ler o próximo livro. Supere o estranhamento inicial, leia com calma, ultrapasse a lentidão de algumas partes, que você verá que o que tem em mãos é um novo clássico da FC. Quatro aliens para Breq e sua vingança e uma forte recomendação para você ler também.


Até mais!

Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. nossa, que livro maravilhoso esse!
    estou na metade ainda e já considero uma das melhores leituras de todas!

    ResponderExcluir
  2. bem, agora que terminei, posso falar... ainda considero uma das melhores leituras =D

    estou com aquela síndrome do Vazio Existencial, de quando um livro bom acaba..

    ResponderExcluir
  3. Eu achei maravilhoso! Li em inglês o Justice e o Sword, mas o Mercy me perdeu no meio do caminho. Eu AMO essa proposta de escrever sem gênero e realmente concordo que a sensação é muito legal. Foi uma das minhas melhores leituras dos últimos anos, sem nenhuma dúvida

    Agora que li sua resenha fiquei com vontade de ler em português, ver como foram feitas as adaptações e como mudou essa experiência. Vou correr lá pra comprar em breve. Parabéns pelo texto!

    ResponderExcluir
  4. Capitã, poderia sanar uma dúvida quanto ao livro, por favor? Sendo o primeiro de uma série, ele possui um desfecho satisfatório? Ou possui um final em aberto? Sempre tive curiosidade de lê-lo, mas o fato de suas continuações nunca terem sido publicadas sempre me desanimou!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. O desfecho é satisfatório sim. Pode ler sem medo, pois a editora Aleph disse que vai continuar a trilogia.

      Excluir

Postar um comentário

ANTES DE COMENTAR:

Comentários anônimos, com Desconhecido ou Unknown no lugar do nome, em caixa alta, incompreensíveis ou com ofensas serão excluídos.

O mesmo vale para comentários:

- ofensivos e com ameaças;
- preconceituosos;
- misóginos;
- homo/lesbo/bi/transfóbicos;
- com palavrões e palavras de baixo calão;
- reaças.

A área de comentários não é a casa da mãe Joana, então tenha respeito, especialmente se for discordar do coleguinha. A autora não se responsabiliza por opiniões emitidas nos comentários. Essas opiniões não refletem necessariamente as da autoria do blog.

Form for Contact Page (Do not remove)