Aniquilação e a incompletude

Aniquilação estreou na Netflix há pouco tempo e como muita gente estava curiosa para saber o que achei, primeiro resenhei o livro - que foi uma decepção, já adianto - e depois vi o filme que muito me agradou, pois preencheu os buracos que o livro não se esforçou em tapar. Há muitas coisas interessantes nele, como o elenco e os efeitos, mas quero falar mesmo é do sentimento que me parece permear o longa de Alex Garland: a incompletude.




Vamos às definições?

in.com.ple.tu.de
ĩkõplɛˈtud(ə)
nome feminino
estado daquilo que é ou está incompleto

PSICOLOGIA sentimento de incompletude
sentimento de imperfeição e de insuficiência característico de certas doenças psíquicas

Estado daquilo que é ou está incompleto. Quando o filme começa e vemos uma inerte Lena (Natalie Portman) sendo interrogada por pessoas usando roupas especiais, notamos que algo terrivelmente bizarro aconteceu. Ela nem mesmo consegue explicar o que houve. Conforme avançamos na narrativa notamos que ela perdeu o marido e há um ano ela lamenta o que aconteceu. Mas eis que um dia ele reaparece. Não completamente. Não como ele era. Sem saber se definir. E logo Kane (Oscar Isaac) é internado, o que faz Lena conhecer o tipo de missão que o marido, sargento do Exército, esteve envolvido.

Ninguém voltou do Brilho até Kane. Ninguém sabe direito o que o Brilho é. Uma dimensão extra? Um evento alienígena? Um evento divino? Várias equipes foram enviadas para dentro do local, mas apenas Kane voltou. Lena acaba integrando uma equipe toda feminina para entrar naquela região bizarra, na tentativa de descobrir o que está acontecendo e, quem sabe, evitar que a região se expanda para áreas populosas, o que já está acontecendo.

Cada uma daquelas mulheres - todas profissionais bem gabaritadas em suas profissões - me pareceram de alguma forma incompletas, quebradas. E não foi uma questão de roteiro mal escrito ou de atuação pobre das atrizes que, convenhamos, são bem experientes e expressivas, inclusive ganhadoras de expressivos prêmios de atuação. Ao contrário, elas atuaram muito bem. Bem demais. O que me pareceu é que cada uma das personagens estava incompleta, quebrada. Podemos traçar um paralelo com a depressão e em como algumas pessoas se entregam à autodestruição, podendo sair completamente diferentes da situação se comparadas a como eram no começo.

Em um ambiente controlado pelo fantástico, as personagens já adentram um ambiente de transição, um pântano, um local alagado, onde o escoamento da água é lento, e há uma mistura de água doce com água salina. Os seres vivos se adaptam para este ambiente em específico, vivendo os rigores de dois ambientes distintos. Assim são as pessoas, transitando em diferentes esferas sociais e suas complexidades, em diferentes momentos de identidade. Podemos ver Lena, quebrada, fraturada, tentando ser uma pessoa de novo depois de não ter notícias do marido por um ano.

As personagens apresentam partes que faltam. Seja a automutilação para encontrar uma compreensão na dor ou para afastá-la, seja perdendo parentes e até a saúde, seja a busca pelo conforto no álcool, as personagens adentram este ambiente e já se sentem modificadas por ele, já que o tempo, a biologia, a física, dentro do Brilho são diferentes do lado de fora. Porém essa modificação não é fácil. Elas se assustarão com as implicações dessas modificações, até que algumas simplesmente as abraçam ou são destruídas por elas. Seria isso o que elas precisavam, queriam, desde o começo? Uma experiência que trouxesse o sentido que elas não tinham? É o que me parece.


Percebemos que a tragédia já marcou aquelas mulheres. Elas entram no Brilho marcadas por seus passados, talvez esperando que a experiência as complete. No entanto, é possível reparar danos tão intensos? Um cristal pode sofrer uma fissura, ficar modificado para sempre e ainda assim se manter inteiro. O Brilho talvez lhes dê a chance de mutação. De usar a dor para alcançar um outro nível pessoal de existência, uma maneira de dissipar aquela parte que falta para completar com o desconhecido. O que explica a cena final de Lena (não, não vou dar spoilers, você vai ter que assistir).

Mesmo com o livro tendo grandes falhas, que me fizeram empurrar a leitura, o filme me deu uma experiência que Jeff não conseguiu naquelas páginas. O filme me convence, o filme me entrega uma complexidade que o autor não deu ao seu enredo. Não apenas o filme mostra que personagens femininas são tão capazes e completas quanto personagens masculinos, como nos traz uma experiência que vai acabar sendo diferente para cada um, assim como foi diferente para cada uma daquelas mulheres.

Até mais.

Leia mais:
How Annihilation Nails the Complex Reality of Depression - Vulture
How ‘Annihilation’ Gave Me a Greater Appreciation for Jeff VanderMeer’s Novel - Collider
What Makes 'Annihilation' a Different Type of Female-Driven Movie - The Hollywood Reporter
'Annihilation' Shows It's Possible To Cast All Women In A Movie Without Making A Big Deal About It - Bustle

Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Eu sabia que ia adorar ler tua versão do filme! Como disse lá no Valkirias, não conseguir terminar de ler o livro por achar a trama extremamente arrastada, e olha que eu geralmente resisto a abandonar uma história. Com 'Aniquilação', o filme, me identifiquei muito mais com a narrativa, foi uma evolução (hehe) maravilhosa da história do livro (pelo menos do pouco que consegui me obrigar a ler).

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    1. Eu também reluto muito em abandonar livros, mas tem horas que não dá! Infelizmente, o livro trouxe uma ideia mal aproveitada pelo autor. Felizmente o filme conseguiu corrigir esses erros.

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  2. Olá

    Concordo sempre com suas críticas positivas, aí resolvi ler um livro que você não gostasse (para tirar a teima). E realmente, o livro se arrasta.

    Interessante sobre o filme, dar uma segunda chance à hitória!
    O 'trailer' não havia me empolgado, pois parece mais um filme de terror com monstros do que um filme que permita reflexões (bem, é raro, mas acontece de 'trailers' às vezes serem piores que os filmes).

    ps: Perdemos recentemente duas pessoas muito importantes para os temas circundantes deste blog, ciência e direitos/inclusão: Hawking e Marielle. Este blog é uma forma destes pensamentos perpetuarem. Obrigado.

    Abs!

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  3. eu passei pela mesma experiência, detestei o livro, mas gostei do filme. Depois estava pensando se o filme utilizou como base a trilogia toda, ou partes dos outros livros. Mas não quero ler o restante para descobrir! rsrsrs

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  4. Não li o livro. O curioso no filme é o ar é pesado, incômodo, desde o início - logo se percebe algo estranho entre a protagonista e o colega de trabalho - até a entrada no Brilho. Senti esse incômodo constante também em "Mãe". O desconhecido revela-se como uma fuga das quatro exploradoras e a gente vai vendo uma por uma "ir-se", ou como você escreveu, dissipar-se, algumas na morte, outras na estrutura do Brilho, a cientista que se transformou num ramo de galhos floridos representa bem esse processo, além da própria Natalie no final em meio ao mimetismo da entidade...

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