Star Trek, Benny Russell e racismo

Star Trek começou e manteve uma visão próspera de humanidade, através de metáforas e de enredos muitas vezes fantásticos, oferecendo uma visão ousada e otimista de futuro. Em um primeiro momento, essa visão tão distinta de nosso atual mundo contemporâneo, violento e polarizado do século XXI, pode parecer mais uma fantasia utópica inalcançável do que ficção científica. Contudo, mais do que nunca, precisamos dessa visão futurista positiva, precisamos ver que a raça humana pode resolver seus problemas com diplomacia e diálogo e não com punhos e armas.

No que se refere às séries, cada uma lidou com diversas metáforas para poder trabalhar assuntos polêmicos. Mas Deep Space Nine deixou a metáfora de lado e apertou a ferida onde doía com o melhor episódio da série chamado “Far Beyond the Stars” (S6E13), transmitido em 1998. Neste episódio, o capitão Sisko entra em uma espécie de coma induzido pelos Profetas (alienígenas que governavam o wormhole guardado pela estação DS9). Ele é transportado para a figura de Benny Russell, um escritor de ficção científica dos anos 1950, em Nova York, que precisa enfrentar o racismo e o preconceito da época para poder contar as aventuras de um capitão chamado Benjamin Sisko, que comanda uma estação espacial no futuro. E prestes a completar 20 anos, o episódio é mais atual do que nunca, porque pouca coisa mudou.

Star Trek, Benny Russell e racismo

Quando a série clássica estreou em 1966, essa visão unida de futuro, livre de doenças, fome e miséria, era difícil de compreender. Mesmo com os movimentos pelos direitos civis sacudindo várias partes do mundo, nem todos embarcaram nessa visão igualitária e preferia a segregação em nome de se manterem no poder. A visão de uma atriz negra como oficial da Enterprise e não como uma empregada, não caiu no gosto de muita gente. E as séries lidaram com discriminação e segregação várias vezes, sempre através de metáforas para tratar do assunto da semana.

Em Far Beyond the Stars, o escritor Benny Russel é apaixonado por aventuras de ficção científica. Ele trabalha para uma revista que publica contos mensalmente e começa a escrever este enredo sobre uma estação espacial comandada por um capitão negro depois que o desenhista da revista rascunha uma estação parecida com DS9. A história é rejeitada quase de imediato pelo editor apenas pelo fato de o protagonista ser negro:

– Qual é, Benny? Seu capitão é um herói negro. Chefe de uma estação espacial, pelo amor de Deus.
– E qual é o problema?
– As pessoas não vão aceitar. Não é crível.
– Ah, e marcianos são?
– Fique de fora disso, Herb.

O editor continua argumentando que se fosse um branco, ele publicaria sem problemas. Os colegas de Benny não concordam com as mudanças do editor, eles amaram a história sobre o capitão Sisko. Uma delas escreve com um pseudônimo masculino, porque os leitores não acreditariam em contos de ficção científica escritos por uma mulher e ela mesma diz que a FC precisa de mulheres fortes como as que Benny escreveu em sua DS9.

Um dos colegas de Benny então propõe uma mudança para tentar aprovar sua história. E se tudo aquilo não passasse de um sonho de um homem negro, sonhando com as estrelas, sonhando com um mundo melhor? O editor parece aceitar a ideia e Benny vai comemorar com sua namorada e seus amigos, mas acaba espancado por dois policiais brancos quando reconhece um amigo que morreu em um tiroteio. Semanas depois de se recuperar da brutalidade da polícia, Benny retorna ao escritório da revista, apenas para descobrir que naquele mês não haveria edição, pois para o dono "ela não atendia os altos padrões anteriores". Ou seja, sua história não seria publicada. E o editor ainda por cima demite Benny.

A namorada de Benny, seus amigos da vizinhança, ninguém acreditava em negros indo ao espaço e sendo líderes e capitães de naves ou estações espaciais. Aquilo era coisa de lunático, de gente que não "tem o pé no chão". O rapaz, amigo de Benny, que morreu no tiroteio até comentou com ele na lanchonete:

Só nos deixariam ir ao espaço se fosse pra engraxar seus sapatos.

O desespero de Benny com o desrespeito com o qual precisava conviver o leva a rebater o preconceito do editor, que diz que não é pessoal. Mas Benny não está preocupado com a história não ser publicada, ele está cansado de conceder em favor dos brancos, que sempre tinham prioridade, que sempre tinham as oportunidades, como seu colega que conseguiu contrato com uma editora para lançar um romance. O racismo que ele precisava enfrentar dia após dia, como quando é parado por dois policiais brancos, que desconfiam de sua figura por estar apenas bem vestido, por fim destrói sua estabilidade emocional e ele colapsa na frente dos colegas escritores.

O episódio aborda violência policial, racismo, discriminação e os efeitos do racismo sobre a vida de uma pessoa. Ele também não economizou na linguagem típica dos anos 1950, usando "pessoas de cor" e "niggers", algo que na época eram tidos como aceitáveis. O próprio ator que interpreta Sisko\Russell, assim comentou depois que o episódio foi ao ar:

O que é mais insidioso sobre o racismo é que ele é inconsciente. É da nossa cultura, é a maneira como as pessoas pensam.

Isso pode ser visto quando o editor diz que não é pessoal, pois "é assim que as coisas são". O mesmo aconteceu quando o editor sugeriu publicar uma foto com uma biografia de cada um dos escritores da revista. Para Benny, a foto teria que ser de um cara branco. E a escritora, colega de Benny, não poderia aparecer como mulher, tanto que ela publicava como KC Hunter, uma prática extremamente comum até hoje. Podemos ver CL Moore, AC Crispin, J.M. Dillard e James Tiptree Jr. (pseudônimo de Alice Sheldon), tendo que ocultar seus gêneros para poderem publicar.

O episódio reflete uma realidade na ficção científica que poucas pessoas gostam de admitir e que foi o que fez explodir a polêmica dos Puppies e do Hugo Awards dois anos atrás. Grupos que não aceitavam o fato de que negros, mulheres, gays, trans* estavam ganhando prêmios ao invés de caras brancos que ~supostamente~ escreviam com qualidade, enquanto os outros só estavam ganhando por ser "politicamente correto". Eles voltaram a chiar quando NK Jemisin ganhou o Hugo por A Quinta Estação e Nnedi Okorafor ganhou por Binti. E não podemos esquecer de Isaac Asimov dizendo para Samuel Delany que ele só ganhou o Hugo "por ser preto".

Aliás, Samuel Delany é uma figura que serviu de inspiração para o personagem de Benny, já que ele sofreu com o mesmo preconceito do editor John W. Campbell, Jr., um dos mais famosos editores de ficção científica, da Analog Magazine. Campbell rejeitou seu romance, Nova, alegando que os leitores não conseguiriam se identificar com um protagonista negro. Nova foi um sucesso.

No documentário The Captains, Avery Brooks comentou que uma das motivações para aceitar o papel de Sisko era o de interpretar o papel de um pai solteiro com uma criança. Ele queria interpretar um pai que tivesse um papel positivo na vida do filho. Sisko é viúvo, precisando criar um filho sozinho em território hostil, passando por todos os reveses que pais de pré-adolescentes precisam enfrentar. Essa é uma representação extremamente positiva, tratando de um assunto do século XX com ares de século XXIV, onde muitos garotos negros perderam seus pais para a violência.

O personagem é bastante consciente quando o assunto é racismo e não esquece a história. Em um episódio (Badda-Bing, Badda-Bang, S7E15) em que a tripulação visita um programa em Las Vegas, nos anos 1960, numa holosuíte do Quark, Sisko se recusa a participar. Sua namorada Casidy pergunta por que ele não quer ir e ele responde:

Sisko: Você quer saber... quer mesmo saber qual é o meu problema? Eu digo: Las Vegas, 1962, esse é o meu problema. Em 1962, negros não eram bem-vindos lá. Ah, claro, podíamos ser zeladores, mas clientes? Nunca.

Kasidy: Talvez, mas isso era na Vegas real, mas não é assim no Vic's. Nunca fiquei desconfortável lá, nem Jake.

Sisko: Você não percebe? Isso é irreal. Em 1962, o movimento pelos direitos civis ainda estava engatinhando. Não era uma época fácil para o nosso povo e não vou fingir que era.

Kasidy: Amor, eu sei que o Vic's não é uma representação fiel de como as coisas eram lá, mas não foi feita para ser. Ele nos mostra como as coisas poderiam ter sido, como deveriam ter sido.

Sisko: Nós não podemos ignorar a verdade sobre nosso passado.

Kasidy: Ir ao Vic's não vai nos fazer esquecer quem somos ou de onde viemos. O que ele vai fazer é nos lembrar que não há mais limites ou limitações, exceto aqueles que impomos sobre nós mesmos.


Cada vez que alguém reclama com "não politizem meu entretenimento!" eu gosto de lembrar que Star Trek SEMPRE foi política. Comentários assim normalmente vêm de gente que nunca parou para pensar nas metáforas utilizadas pelas séries para discutir vários temas relevantes porque não eram importantes para elas. E aí quando um episódio trata do assunto de maneira evidente ou quando um ator\atriz faz um posicionamento político, eles se sentem pessoalmente atingidos, já que seus privilégios foram escancarados. Quando você é a norma, dificilmente vê os problemas dos outros.

A ficção científica sempre foi lar do outro, do estranho, do bizarro. É o lar da alteridade, do diferente, de quebrar barreiras e de audaciosamente ir onde ninguém jamais esteve. Justamente por ser tão rica e diversificada, alguns acham que FC é um brinquedo só seu e que ninguém mais tem direito de brincar junto. Há espaço para todas nós aqui e ninguém vai a lugar nenhum.

Você pode destruir uma história, mas não pode destruir uma ideia!

Benny Russell

Vida longa e próspera!

Leia também:
The Sisko, Part Two: Unapologetic Blackness - The Nerds of Color
The Sisko, Part One: Our Living Black Manhood - The Nerds of Color
O Captain, My Captain: On the Importance of Ben Sisko - Kendra James

Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Só amor pelo que você escreveu... Assistia a série esporadicamente, justamente por ser um lugar comum do mundo Nerd. Entretanto, larguei de bobeira e fui assistir. Quantas vezes não coloquei a mão na boca pensando no buxixo que tal episódio não teria provocado na época em que foi ao ar? E esse me fez pensar que talvez Benny fosse um autor negro real, pois a construção do personagem realmente me convenceu, tanto que dei um google nele e achei seu texto maravilhoso. Obrigada!

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  2. Excelente texto, DS9 sempre foi minha franquia de ST favorita, e esse episódio em especial é uma obra prima. Obrigado por dedicar tempo a escrita e divulgação dessas ideias revolucionárias e progressistas, abraços cordiais.

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