Stargate SG-1 e feminismo branco

Sou fã de carteirinha de toda a franquia Stargate. Do subestimado filme à série odiada de Stargate Universe, tudo em Stargate me cativa. Desde o aparato em si, que disca para planetas distantes utilizando-se de um wormhole, ao seus personagens bem escritos, bem desenvolvidos e a forma como se utiliza de todos os estereótipos da ficção científica, alguns até de forma irônica. Mas sempre houve um episódio específico que me incomodou durante anos.




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Parte 2

Vamos ao contexto. Depois do filme de 1994 - e um processo milionário por plágio contra o diretor e produtor do longa - Stargate virou uma série de TV de dez temporadas de grande sucesso, chamada Stargate SG-1 (com mais dois spin-offs seguintes, Stargate Atlantis e Universe). Com a reativação do programa Stargate e a volta da ameaça alienígena, o presidente dos Estados Unidos ordenou a criação de diversas equipes militares, que atravessariam o aparato para identificar e, com sorte, neutralizar ameaças à Terra. A equipe SG-1 era composta pelo coronel (depois general) Jack O'Neill, o egiptólogo excêntrico, Daniel Jackson, o primeiro-oficial de Apófis, que traiu seu mestre para se juntar aos humanos, Teal'c e a capitã (depois coronel) Samantha Carter, astrofísica, soldado, cientista e especialista em Stargate.

Sam é umas das personagens mais bem escritas e mais bem desenvolvidas da ficção científica. Stargate tem um ótimo histórico de grandes personagens femininas em suas séries. Seus arcos sempre são bem preenchidos, há discursos óbvios de opressão e discriminação de gênero em vários deles. Em Atlantis, por exemplo, a Dra. Elizabeth Weir reclama que os militares não gostariam de ver uma civil, muito menos uma mulher liderando a expedição. Mas também há momentos em que a série escorrega.

A primeira temporada de SG-1, por exemplo, é bem fraquinha. A série engata depois e vai bem na maioria das temporadas, mas a primeira tem episódios fracos e previsíveis. Um deles, o que me incomoda profundamente, é "Emancipation". Nele, a equipe SG-1 encontra uma tribo em um planeta, derivada do povo mongol, onde as mulheres têm seus rostos cobertos para evitar serem vistas pelos "demônios", que na verdade são os Goa'uld, os grandes vilões alienígenas da série.

Quando eles encontram a equipe SG-1, abaixam a cabeça para não olhar Sam Carter, que acaba prisioneira de uma tribo vizinha e vendida com um item exótico. Trocando em miúdos, Sam precisa salvar a menina da outra tribo ao lutar com o líder do clã e sendo o bom soldado que é, ela vence o chefe, leva a menina para casa e a tribo, em agradecimento, diz que não mais esconderá o rosto das mulheres de sua tribo. O dia está salvo!

É, só que não. O grande problema do episódio é passar a ideia de pessoas brancas salvando "pessoas de cor" - negros, asiáticos, árabes, indígenas. Tudo isso é ofensivo e batido, tanto quanto o estereótipo do herói branco salvando nativos, como vimos em Avatar, algo que ocorre com absurda frequência na ficção científica em geral. Entendo que o episódio tenha 20 anos de existência, mas a ideia geral não mudou muito de lá para cá: de que mulheres ocidentais são mais liberadas de opressões do que as "mulheres de cor" e precisam ensiná-las a como lutar contra isso. Além de não ser verdade, espalha um mito danoso de que o ocidente deve salvar o oriente. Quem disse que elas não lutam? Quem disse que as lutas precisam ser como a gente quer que sejam?

Apesar de a equipe de SG-1 querer que o povo entenda que os Goa'uld não são demônios, nem que são invencíveis, não é crível que uma tribo supostamente emancipada fará alguma diferença após séculos de tradição, em um planeta com várias outras tribos em volta. E se as mulheres não quiserem deixar o uso do véu, elas serão presas, castigadas, banidas da tribo? Não é porque elas estão com o rosto escondido que elas não entendem uma eventual opressão e aí precisam de uma branca emancipada para resolver o problema.

Eu entendo que esconder seu corpo para impedir os olhares masculinos, porque um homem é, hipoteticamente, incapaz de se controlar e pode sentir desejo, é uma opressão. A hipersexualização e objetificação do corpo feminino que tanto vemos em revistas e comerciais no ocidente também é. Em O Mundo de Aisha, em uma das histórias, a personagem iemenita conversa com uma ocidental sobre o uso do niqab, que esconde todo o corpo e só deixa os olhos visíveis. O niqab é a única maneira que aquelas mulheres, que vivem em uma das sociedades mais fechadas do mundo, têm de poderem estudar e trabalhar. As que não usam, são geralmente ofendidas porque não seguem a tradição tribal. Elas têm sim noção da restrição que o niqab impõe e de como o ocidente o vê como um mecanismo opressor, mas entendem que ele também é a única maneira que elas possuem de conseguir alguma liberdade na sociedade extremamente patriarcal e conservadora em que vivem.

Stargate tem também o grande defeito de colocar os heróis como brancos e cada vez que eles precisam de um pouco de exotismo numa história, os personagens são asiáticos, negros, indígenas. E isso é um grande defeito da série como um todo, por que quem ajuda esses povos, como os Jaffa, a se liberar da opressão Goa'uld? Pois é. O personagem de Teal'c é o componente exótico na equipe SG-1 em si, pois os outros três personagens são todos brancos e é com a ajuda dos Tauri (humanos) que ele liberta seu povo da opressão Goa'uld. Foram dez temporadas trabalhando escravidão e racismo e "Emancipation" acaba com misoginia em 46 minutos. Assim não dá, SG-1!

É preciso parar de produzir episódios e roteiros tão fracos como esse e, o principal, parar de subestimar povos que não sejam os nossos, achando que nós sabemos das coisas e elas não. Ouçam as manas negras, as manas asiáticas, as manas indígenas, as manas muçulmanas, ao invés de apenas falar. Temos muito que aprender ainda.

Chevron seven locked!


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Comentários

  1. Gosto do filme e vi pouco das séries, apesar da base de ambos ser algo que me incomoda muito: achar que qualquer grande tecnologia (como fizeram as pirâmides?) não caucasiana tem base alienígena. Mas a franquia me ganhou pelo visual :)

    Quanto ao texto em si, parabéns pela crítica, já que a norma é em qualquer revisão de obras mais velhas, ignorar pontos de analogia do 'colonizador branco salva o mundo' em prol daquele discurso de que na época eram outras normas e blá blá blá

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