Resenha: Ultra Carnem, de César Bravo

Esse é mais um livro que peguei com expectativa alta e quebrei a cara. Há ingredientes nele que o fariam ser uma grande obra brasileira de terror e suspense, mas que ficaram pelo caminho e no final temos pontas soltas, preconceitos e velhos estereótipos conhecidos na literatura que não dá para mais aceitar.






Parceria Momentum Saga e
editora DarkSide



O livro
O enredo começa com a chegada de uma cigana a um orfanato comandando por um padre e uma freira. Uma cigana está pagando para deixar lá um garotinho arredio, que fica quieto no seu canto, agarrado a um vidrinho de tinta. Lester, o garoto, é acolhido, meio a contragosto, e desperta a curiosidade de algumas crianças, raiva de outras. Como sua paixão era pintar, o padre lhe dá material e um quarto para fazer sua arte, algumas de muito mal gosto na opinião dos religiosos.



Especialmente a tal da estátua da Ciganinha, que de tão bem feita para ter vida própria. Seus quadros são vivos, intensos, retratando cenas por vezes sangrentas de pessoas morrendo. Ele não se separa daquela tinta por nada na vida. Uma tinta que vai custar a vida de muitas pessoas dali em diante, quando o orfanato acaba destruído.

O livro é composto por quatro contos e essa falta de continuidade me incomodou um pouco. Temos bons personagens, alguns irritantemente bem construídos. Tem momentos em que você quer esganar alguns deles por serem tão fúteis, tão pequenos e que ligam tão pouco para a vida deles mesmos e dos outros. Alguns ambientes descritos também são ricamente construídos, sufocantes, obscuros.

Depois do que houve no orfanato e o desaparecimento do garoto e de suas obras, pulamos dezenas de anos para a atualidade, onde um pintor frustrado com sua arte e a falta de dinheiro parte em busca da tinta misteriosa do menino cigano. Isso praticamente lhe custa seu relacionamento enquanto ele insiste em buscar por algo que todo mundo diz que não existe ou que é amaldiçoado.

No conto seguinte, temos um frustrado e ganancioso técnico em informática, que ama o filho, mas que evita a esposa "gorda e preguiçosa, que não se cuida". Ao prestar um serviço em uma loja cigana, e de superfaturar o problema para ganhar um extra, ele acaba sendo pago com um desejo. Na loja está a estátua da ciganinha, a quem a dona presta um grande respeito e reverência. Marcos pode pedir a ela o que quiser. E ele pede, tomando uma guinada em sua vida, não sem consequências. Marcos é o personagem mais babaca do livro todo, daquele que deseja a enteada do padrão, sabe?

E o último conto nos traz uma visão maior sobre a administração do inferno, seus níveis hierárquicos e o que o poderoso cramunhão está em busca, recrutando Lucrécia, uma sofrida garçonete. Tudo relacionado o menino cigano Lester e sua arte perturbadora. As ideias são todas muito boas, com personagens bem construídos, mas a condução da história se arrasta ao longo das mais de 350 páginas. Foi difícil levar a leitura adiante só por esse fato. Mas os problemas não acabaram aqui.

Lá em cima eu disse que a obra tem todos os ingredientes para ser um grande livro de terror nacional. O autor soube descrever personagens e alguns dos ambientes com esmero, mas peca na narrativa ao repetir os velhos estereótipos que já cansei de falar no blog várias e várias vezes. Para começar, ele usa "o travesti" ao invés de "a travesti" e o faz várias vezes. Também tem piadinha racista, em vários momentos e essa frase aqui que não entendo como tanta gente não percebe o quão problemática ela é:

Aim era o negro mais bonito que ela conhecera na vida, era um pedação como ela costumava dizer.

Página 343

A única mulher de relevância no enredo carrega o pesado e danoso estereótipo de ter sido estuprada (várias vezes) e isso a ~faz forte~. Sério, é 2017, achei que isso tivesse ficado para trás, mas pelo visto me enganei. As mulheres cumprem papéis bem estabelecidos e batidos no livro: namorada, esposa, amante, apaixonada ou a mulher-forte-estuprada. Pronto, acabou a participação feminina na obra. Mulheres ali são valorizadas apenas pela beleza, gostosura e ~força~, força essa medida pela quantidade de estupros que ela aguentou. Essa frase aqui também me incomodou bastante:

Sem dogmas, as mulheres poderiam ser bonitas e maquiadas em todos os continentes (...).

Página 349

Hein??

O livro em si é muito bonito, com capa dura e artes impressionantes do corpo humano e do inferno, dando ao livro aquele tom obscuro e de alta qualidade que tanto gostamos da DarkSide. Uma pena que o enredo em si não corresponda a tanta beleza.

Ficção e realidade
Vários sentimentos em relação a Deus e sua ineficiência em impedir tragédias na vida das pessoas passa pela cabeça dos personagens. Lucrécia, especialmente, se mostra muito decepcionada por ter levado uma vida de miséria e sofrimento e a única divindade a se posicionar a seu favor acabou sendo o Diabo em pessoa. A frustração com o sentimento de injustiça por tentar ser correto está em cada um dos personagens e em suas trajetórias. Quem nunca se sentiu assim?

A arte é uma forma de dar desconforto a quem está confortável e a dar conforto a quem está desconfortável. Mas e o que acontece quando você se alia ao sobrenatural para dar vazão a tantos sentimentos?

Pontos positivos
Livro nacional
Terror e suspense
Arte do livro
Pontos negativos
É chato
Final em aberto
Clichês e estereótipos

Título: Ultra Carnem
Autor: César Bravo
Editora: DarkSide
Páginas: 328
Ano de lançamento: 2016
Onde comprar: Amazon


Avaliação do MS?
Bem, não tenho como indicar esse livro para leitura. Deixo aí a resenha e na sua mão a decisão de querer ler ou não. Mas para mim o livro em nada agregou, apenas me decepcionou profundamente por ver tantas boas ideias desperdiçadas. Dois aliens.



Até mais!


Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Eu estava bem animada para adquirir esse livro, mas a tua resenha foi um balde de água fria...
    Agradeço, pois me poupou uma tremenda frustração!

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  2. Gostaria de ter lido sua resenha antes de comprar o livro.
    A primeira parte foi entusiasmante de se ler, e francamente fiquei empolgada, mas no decorrer da historia todo aquele gás se perde no caminho e o resto da leitura se baseia em um arrastar longo e aparentemente perpétuo.

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  3. Ufa" Até que enfim encontrei uma resenha apontando pontos que eu também considero negativo sobre esse livro.

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  4. Uma aba do navegador aberta np site da Darksides e outra aberta no google em busca de resenhas. Tpdas as vezes acabo aqui e me livro de gastar dinheiro à toa. Obrigadaço!

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  5. Única parte boa é a história do Lester criança

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